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Rio de Janeiro, RJ, Brazil
Cláudia Andréa Prata Ferreira é Professora Titular de Literaturas Hebraica e Judaica e Cultura Judaica - do Setor de Língua e Literatura Hebraicas do Departamento de Letras Orientais e Eslavas da Faculdade de Letras da UFRJ.

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terça-feira, 25 de novembro de 2008

As histórias que a diplomacia prefere esquecer

O jornalista e pesquisador Roberto Lopes apresenta nas 540 páginas do livro “Missão no Reich” o resultado de 25 anos de investigação em arquivos diplomáticos e militares de 11 países sobre a polêmica atuação dos desconhecidos e desprestigiados diplomatas latino-americanos na Alemanha nazista


Zero Hora, em 27/09/2008 - Aconteceu há exatos dois anos, na filial paulista de uma editora européia. Sentado à minha frente, o coordenador editorial da empresa, jovem e polido, de aspecto culto, aparentemente interessado no que eu trazia.


Sobre a mesa espalhei uma lágrima do resultado de mais de 25 anos de investigação em arquivos diplomáticos e militares de 11 países. Revelações surpreendentes (extraídas, por vezes, de fontes inéditas para a historiografia brasileira, como os arquivos do Estado-Maior do Exército francês) sobre o comportamento dos diplomatas latino-americanos que testemunharam o surgimento do fenômeno político Adolf Hitler na Alemanha dos anos 1920, assistiram sua caminhada rumo ao poder, e, finalmente, a consolidação de sua autoridade no aparato da ditadura nacional-socialista.


Aos olhos do rapaz foram desfilando, um após outro, o cônsul brasileiro que tentou trazer Hitler em visita ao Brasil; o diplomata peruano que os alemães julgavam, poderia ajudá-los em seu programa militar de foguetes; o chargé d’affaires boliviano em quem Hitler e seu propagandista-chefe, Goebbels, confiavam; o cônsul chileno metido até as orelhas na campanha pelo rearmamento da Alemanha; os representantes da Argentina e do Brasil que freqüentavam os órgãos de repressão do III Reich; o cônsul equatoriano que, em Hamburgo, tripudiava (de forma desastrada) sobre os judeus; o encarregado de negócios uruguaio Luis Dupuy, que se deixara seduzir pela figura do Führer – “Um grande caudilho, um verdadeiro condutor de multidões, a quem o povo alemão segue cegamente porque ele sabe (...) de seus deveres de governante e considera o bem do povo a lei suprema”.


Meu interlocutor examinou as fotos – raras – daquela gente que não conhecia. Olhou seus rostos; alguns, detidamente. Depois, sempre gentil, disse que encaminharia o assunto, prometendo telefonar-me sobre a possível contratação do livro que eu sugeria – provisoriamente intitulado Missão no Reich. E então...


Então foi como se todo o pó de 80 anos de história tivesse descido, subitamente, sobre ele. O moço da editora desapareceu.


Passado mais de um mês obtive, a certo custo, que o rapaz se reintegrasse na forma de uma voz sem emoção, ao telefone. Tratou-me como vaga lembrança. Não pediu desculpas pelo abandono, ou pela desatenção. Explicou, sem se alongar, que sobre o assunto da minha pesquisa consultara colegas de sua editora em outros pontos da América Latina (citou a Colômbia). “Me disseram que esse é um tema muito desgastado”, foi a sentença.


O autor dessa estultice, e os amigos dele, ficariam pasmos se soubessem dos rigores da diplomacia com os seus segredos. (E do contentamento dela com os intelectuais que se resignam diante deles.)


Ano passado, uma equipe da BBC TV tentou a permissão do Foreign Office para remexer nos arquivos britânicos sobre a guerra das Malvinas, de 1982. Seus integrantes foram informados de que serão bem-vindos, se vivos estiverem, a partir do ano de 2072. Motivo: o embargo de 90 anos decretado pelo governo de Londres sobre decisões cruciais desse conflito – como a de torpedear um cruzador argentino do tempo da IIª Guerra (verdadeiro museu flutuante, que já não ameaçava), e matar, de um só golpe, 323 marinheiros.


Os cuidados dos ingleses na proteção à política manejada contra os nazistas não são menores. A expectativa é de que somente nos próximos 20 ou 25 anos o Public Record Office aceite liberar dados sobre as razões que levaram o governo de Sua Majestade a desprezar os pedidos de ajuda que chegaram às ilhas, vindos de elementos da resistência alemã a Hitler. Nos anos de 1938 e 1939, ao tratar os antinazistas com ceticismo – quase indiferença – as autoridades britânicas teriam carimbado o embarque da humanidade para um cataclisma de 50 milhões de vítimas. Mas isso, espera-se, a História, dentro de mais algum tempo, terá condições de julgar.


Na parte latina da América não há previsão alguma. Os arquivos diplomáticos estão trancados, e pronto. Houve progresso na Argentina – que aceitou verificar se os seus diplomatas foram responsáveis pelo abandono de judeus naturalizados argentinos à morte, em campos de concentração –, e, recentemente, uma certa abertura do Itamaraty para a publicação, por uma equipe da Universidade de São Paulo, de comunicados sobre as restrições ao ingresso de refugiados judeus no Brasil. Mas, bem ao contrário do que supõem alguns, as ligações entre a América Latina e o nazi-fascismo ainda permanecem na fria penumbra dos cofres, das caixas, das gavetas fechadas à chave.


Missão no Reich, Glória e Covardia dos Diplomatas Latinos-Americanos na Alemanha de Hitler desvenda uma parcela significativa desses segredos, recorrendo à metodologia da análise dos telegramas, ofícios, relatórios, cartas e anotações pessoais dos representantes latino-americanos que serviram em Berlim e em outras importantes cidades européias, ao tempo de Hitler e de seu alter ego italiano, Mussolini. Não foi, essa arte de investigação da verdade, o seu único trunfo. Tão importante quanto ela foi buscar as pistas iniciais na Europa e nos Estados Unidos – em Austin (Texas), Munique, Paris, Roma –, para só depois completar a investigação através de abordagens pontuais, objetivas, nos serviços diplomáticos latino-americanos.


As descobertas de Missão no Reich destroem a tese de historiadores preconceituosos, de que Berlim ignorava a América Latina – ou desprezava sua importância para um eventual esforço de guerra. Suas páginas mostram com clareza que, ao menos sete anos antes de entrar pela primeira vez em seu amplo gabinete da Chancelaria do Reich, o extremista de direita Hitler já ouvira relatos detalhados sobre o Brasil. E ainda durante a sua campanha pelo poder, escutara dissertações acerca dos minerais bolivianos, da amizade histórica que unia os chilenos aos alemães, do firme progresso da Argentina, do sentimento antiamericano arraigado nos mexicanos. Goering, o piloto-herói e extrovertido do círculo íntimo do Führer, também ouvira – e lera – sobre os sul-americanos. Schacht, o presidente do Reichsbank, pensava até em investir nos garimpos da Colômbia.


Não é de estranhar, portanto, que depois de ter dado o primeiro passo no sentido de preparar a vingança contra os vencedores da I Guerra – sua retirada da Liga das Nações, no início do segundo semestre de 1933 – o governo Hitler tenha levado menos de seis meses para organizar a viagem à América do Sul de um grupo de peritos em comércio internacional. Hermann Goering, o aviador que controlava as importações de mercadorias de valor estratégico (leia-se suprimentos de guerra) demonstrava interesse especial no potencial econômico do Peru.


Há ainda milhares de importantes mistérios que só poderão ser desvendados através de uma apuração persistente. Em 1939: o Ano das Esperanças Mortas, volume que em 2009 se seguirá ao Missão no Reich, relatando como os diplomatas latino-americanos descreveram para os seus superiores a crise que desaguou na invasão da Polônia, vêm à tona os documentos em que diplomatas latino-americanos lotados em Varsóvia designavam as residências de judeus ricos na cidade como sede de suas representações diplomáticas e consulares. Os certificados foram datados do dia em que esses diplomatas se retiraram da capital sitiada pelos alemães, e supostamente conferiam certa inviolabilidade aos imóveis, contra os desmandos dos invasores. Mas quais teriam sido os critérios de sua outorga? Um novo achaque contra os judeus desesperados?


E o que dizer dos representantes latino-americanos cujos nomes aparecem numa lista elaborada em agosto de 1943 por diplomatas do III Reich, como sendo a dos diplomatas em postos europeus que deveriam ser liberados para voltar aos seus países, a fim de continuar a propaganda nazista na parte pobre da América? Agosto de 1943! As Américas já haviam rompido relações com Berlim há um ano e meio, e ainda havia latino-americanos que eram considerados pelos hitleristas como merecedores de confiança...


Missão no Reich, que vêm à luz com o selo da Odisséia Editorial, abarca o período conhecido como a “Era Dourada” do nazismo. A fase (até março de 1939) em que Hitler conquistava povos e territórios sem guerra, em que a nata do nazismo ainda se divertia em banquetes seguidos de música, balés e óperas. Eram os dias em que o Ministro Plenipotenciário da Bolívia, por exemplo, atendia os convites do Protocolo alemão de braços não apenas com a sua mulher, mas também com a irmã dela (o que intrigava seus anfitriões). Nas ruas, confundidos pelos milicianos hitleristas com o estereótipo do judeu – testa alta, nariz adunco e orelhas de abano – alguns outros diplomatas latino-americanos eram, vez por outra, surrados sem dó. Mas a falta dos meios de comunicação instantâneos favorecia a tarefa das Chancelarias da América Ibérica para abafar esses casos. Agiram dessa forma, entre outros, os serviços diplomáticos do México, do Peru, da Colômbia e do Brasil.


Em junho de 1933, o líder sindicalista Ley, que Hitler distinguia com sua amizade, irritou-se, em Genebra com a falta de apoio ao seu nome, para integrar as comissões da assembléia da Organização Internacional do Trabalho. E reclamou com jornalistas dos colegas estrangeiros que o boicotavam: “Ouçam bem: entre eles estão Cuba, Uruguai e Bolívia e não sei quantos idiotas sul-americanos mais. Acreditem que o delegado fascista (italiano) e eu temos atrás de nós mais milhões de homens do que toda essa bolha de sabão”.


As 540 páginas de Missão no Reich guardam dezenas de episódios como esse. E muitos outros que falam sobre diplomatas latino-americanos que resistiram ao exibicionismo dos nazistas, que socorreram judeus em desafio à mais perfeita máquina jamais montada para vigiar, investigar, deter e fazer desaparecer seres humanos.


É do dramaturgo francês Racine o alerta: “não há segredos que o tempo não revele”. Especialista na alma das mulheres e nas confissões do amor, Jean Racine, no século 17, não se referia, é certo, às informações confidenciais entre governos. Mas sua advertência não deve ser desprezada.


Afinal, os fatos históricos, em qualquer campo da atividade, são derivados do comportamento dos homens. As páginas de Missão no Reich, que a partir de 10 de outubro estarão nas livrarias, provam isso.


*Roberto Lopes é jornalista e pesquisador do Laboratório de Estudos da Etnicidade, Racismo e Discriminação do Departamento de História da Universidade de São Paulo.


ROBERTO LOPES*


Saiba mais sobre o livro Missão no Reich


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Diplomatas brasileiros fazem pose, em Berlim, em 1917

Sala de estar da embaixada brasileira em Berlim, nos anos 1930

Roberto Lopes é autor de...

... Missão no Reich, Glória e Covardia dos Diplomatas Latino-Americanos na Alemanha de Hitler (Odisséia, 540 páginas R$ 79,90)

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