Scliar reaviva episódio do Antigo Testamento
Escritor gaúcho faz romance a partir da história do patriarca Judá e de seus filhos
Para o integrante da ABL, texto bíblico é um desafio para ficcionistas e deve ser interpretado também como um clássico da literatura
Folha de São Paulo, Ilustrada, em 29/11/2008.
Tensão familiar, amores contidos, intriga, traição, humor e sexo. Novela televisiva? Não. Filme de Woody Allen? Tampouco. Trata-se, nada menos, de uma passagem bíblica.
Mais especificamente, do capítulo 38 do Gênesis, do Antigo Testamento, só que relido pelos olhos do escritor gaúcho Moacyr Scliar, 71, membro da Academia Brasileira de Letras e colunista da Folha.
"Manual da Paixão Solitária", seu mais novo livro, romanceia o episódio em que o patriarca Judá tenta dar continuidade à sua linhagem. Para reavivar a passagem, Scliar traz a história para uma discussão nos dias de hoje.
Quando a obra começa, está para ser iniciada mais uma rodada anual do Congresso de Estudos Bíblicos, na qual um respeitado especialista interpretará o Manuscrito de Shelá.
Trata-se de um documento fictício, que teria sido encontrado numa caverna em Israel, e que traria elementos para preencher lacunas do texto da Bíblia. "No Gênesis, a descrição desses acontecimentos ocupa poucas páginas. Mas trata-se de uma história que provoca muitas reflexões sobre os sentimentos humanos. Por isso, me interessei por ela e quis dar contornos mais completos a personagens e ações", disse Scliar, em entrevista à Folha.
Com relação aos fatos contados na Bíblia, nada foi adulterado. O que o escritor gaúcho fez, apenas, foi criar diálogos, descrições de passagens e personalidades, e, principalmente, investigar suas emoções e a razão de suas decisões.
As coisas têm início quando Judá, filho do patriarca Jacó e irmão de José, o interpretador de sonhos, se afasta da família para criar a própria linhagem. Tem três filhos, Er, Onan e Shelá. Quando estes crescem, ele sai à busca de uma companheira para o filho mais velho. A moça chama-se Tamar. Er, porém, morre antes de engravidá-la. Segundo a tradição da época, quando isso ocorria, o irmão mais novo tinha de assumir essa tarefa. Onan une-se a Tamar e tem com ela relações sexuais, mas com coito interrompido. Assim, ela não fica grávida e a tensão aumenta, até que Onan também morre.
Tamar, mulher misteriosa e ardilosa, engana Judá, oferecendo-se a ele disfarçada, quando este empreendia uma viagem. Deste modo, fica prenhe do patriarca e tem com ele dois filhos, Perez e Zerá. "É um momento de tensão imensa, um desafio para os ficcionistas que o queiram descrever", diz o autor.
Bíblia e literatura
Para Scliar, o texto bíblico deve também ser lido como se faz com autores clássicos como Shakespeare ou Cervantes. "Os jogos de poder e as intrigas amorosas comuns à nossa natureza estão nessas obras. A Bíblia é um verdadeiro catálogo das paixões humanas."
Ele, ainda, não concorda com o modo delicado e angelical que costuma ser agregado aos personagens do Antigo Testamento. "Aquele era um mundo muito hostil e violento. Se não houvesse um extremo grau de disciplina, simplesmente não era possível sobreviver."
E acrescenta que, pelo fato de a vida ter de ser coletiva e rígida em suas leis morais, não havia espaço para o indivíduo. "Daí ser uma referência para questionar, entre outras coisas, a solidão humana", conclui Scliar.
MANUAL DA PAIXÃO SOLITÁRIA
Autor: Moacyr Scliar
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 39,50 (215 págs.)
Trecho: A impassibilidade de Tamar era estranha e, para muitos, ofensiva, mesmo porque Onan não era o único a detestá-la. Minhas primas -prima era coisa que não me faltava, com aquela quantidade de tios- a detestavam. Claro que invejavam sua beleza, mas não era só isso. Adivinhavam nela ânsias, ambições, e um desejo incontrolável por homem. (...) Tamar não se atirava sobre os homens, mas, disso as primas estavam seguras, no íntimo era o que queria fazer, era o que faria, se pudesse. Queria sexo. Também queria riqueza e poder.
Extraído de "Manual da Paixão Solitária", de Moacyr Scliar
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