O Globo, Caderno Prosa e Verso, página 6, em 22/11/2008.
Vidas entrelaçadas
Em romance com toques autobiográficos, Élie Wiesel explora meandros da loucura
Josy Fischberg
Nobel da Paz, ex-prisioneiro nos campos de Auschwitz e Buchenwald durante o Holocausto, o escritor Élie Wiesel parece ter feito, em seu novo romance, um paralelo com sua vida. Assim como Wiesel, o protagonista de “Uma vontade louca de dançar” (Bertrand Brasil) é um judeu que sobreviveu à Segunda Guerra Mundial, saiu da Europa e se naturalizou norte-americano. Doriel é um homem que sofre por estar enlouquecendo, e também nisso existe uma correspondência entre a história e a biografia de Wiesel, nascido na Romênia.
— Quando ainda era estudante, trabalhei em um hospital para doentes mentais por muitos meses. Nunca deixei de me interessar pelo assunto — disse ele ao GLOBO, em entrevista por telefone de Nova York, onde mora. Wiesel afirma ter fascinação pela loucura. — É isso o que há de autobiográfico em meu livro — afirma. Não por acaso, a história de “Uma vontade louca de dançar” é contada através das sessões de psicanálise de Doriel, com uma narrativa dividida: ora é o paciente quem narra sua história, ora é a psicanalista quem dá a sua versão. Um jogo que, em certo momento, faz com que o leitor se confunda e não saiba mais quem é o louco de verdade.
Alma errante em busca de um ser frágil
O início do romance aparenta uma estrutura confusa. O próprio protagonista se encarrega de explicar: “não há qualquer preocupação com cronologia, uma vez que o tempo do louco nem sempre é o do homem dito normal”. Doriel é um homem de aproximadamente 60 anos, sem emprego fixo, celibatário, que tem um profundo conhecimento do judaísmo, militante de várias associações de ajuda a desfavorecidos, angustiado. Ao dar mais informações sobre si, ele diz, para espanto do leitor, que sua loucura não é clínica, mas sim mística.
— A loucura, para mim, tem seu próprio sistema, seu próprio mundo. E está sempre do outro lado da realidade, ou da interpretação. E ela pode, além de clínica, ser mística, claro — explica Wiesel. O bom psicanalista, aliás, na opinião de Wiesel, cura não só a mente, mas também a alma: — O personagem acredita nisso e eu também. A loucura, no caso de Doriel, é chamada de mística porque ele pensa estar possuído por um “dibuk”, uma alma errante que busca um ser frágil onde consiga entrar. Autor e personagem passaram pela Segunda Guerra Mundial, saíram da Europa e viraram cidadãos norte-americanos. No entanto, a história de Wiesel, que completou 80 anos em 2008, é diferente. Ele tinha apenas 15 quando foi deportado de sua cidade natal, na Romênia, para Auschwitz, onde sua mãe e sua irmã mais nova morreram. Perdeu seu pai em Buchenwald, o segundo campo de concentração para onde foi levado e de onde saiu aos 16 anos.
Depois da guerra, já na França, trabalhando como jornalista, nos anos 50, escreveu seu primeiro livro de memórias, “A noite” (Ediouro), relatando os horrores que presenciou nos campos de concentração. É chamado até hoje por alguns de “falsa testemunha”. Loucos parecem não faltar em seu caminho: no ano passado foi atacado num hotel em São Francisco, nos Estados Unidos, por um rapaz de 22 anos que exigia dele a declaração de que o Holocausto não passava de uma mentira.
— Fiquei em choque quando me vi naquela situação. Não entendia o que ele queria comigo, se queria me seqüestrar. Um rapaz que destruiu seu futuro por um ideal estúpido. Eu não me disponho a debater com essas pessoas que me chamam de “falsa testemunha”. Falta dignidade a essa gente — afirma Wiesel, que diz não ter medo de morrer. — Meu medo seria ficar doente, inválido.
Dificuldade para dormir ainda existe
Embora comece confusa, a narração de Doriel vai ficando mais clara ao longo do romance, à medida que suas sessões de psicanálise avançam. Ao mesmo tempo, as anotações de sua psicanalista, Thérése Goldschmidt, também judia, que no início da história são extremamente ordenadas, vão tomando o caminho contrário, tornando-se cada vez mais desconexas. “Se continuasse assim, acabaria acreditando na existência do ‘dibuk’: Doriel não teria se tornado o meu?”, indaga ela, em certo momento.
Wiesel, bem mais lúcido que seus personagens, é um homem que costuma acordar todos os dias por volta das 6h e tem como metas, para os próximos anos, “escrever mais e ter mais alunos” — ele é professor da Universidade de Boston.
A dificuldade para dormir, sobre a qual fala em “A noite”, conseqüência de sua experiência nos campos de concentração, e que parece ser mais uma de suas semelhanças com Doriel, ainda existe: — Ela persiste. Os pesadelos, ocasionalmente, também.
Obras no Brasil
HOMENS SÁBIOS E SUAS HISTÓRIAS (Companhia das Letras): As histórias de Sansão e do rabino Yehoshua ben Levi estão entra as reinterpretadas por Wiesel neste livro.
ALMAS EM FOGO (Perspectiva): Apanhado de contos dos mestres do hassidismo.
O GOLEM (Imago): O ser artificial mítico, associado à tradição mística do judaísmo, tem sua lenda recontada.
MEMÓRIA A DUAS VOZES (L&PM editores): Um longo depoimento de François Mitterrand ao escritor.
A NOITE (Ediouro) Após a agonia que viveu como prisioneiro de Hitler, o escritor narra sua experiência nos campos de concentração nazistas.
REI SALOMÃO E O SEU ANEL MAGICO (CosacNaify): Livro infantil com as histórias do Rei Salomão.
O TEMPO DOS DESENRAIZADOS
Nenhum comentário:
Postar um comentário