FSP (07/05/2009)
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Ilustrada - Contardo Calligaris: Ahmadinejad e Foucault
Temos a nostalgia permanente de uma coletividade em que poderíamos "descansar"
O PRESIDENTE do Irã, Mahmoud Ahmadinejad, adiou sua visita ao Brasil. Melhor assim. Ele é uma das figuras mais sinistras da praça política mundial: uma encarnação do ódio assassino como solução para o fato de que sempre há outros que vivem, pensam e sentem de uma maneira diferente da nossa.
Há um problema no Oriente Médio? Simples, basta acabar com os judeus e aniquilar o Estado de Israel. Isso lhe lembra algo que já aconteceu? Não se preocupe: o genocídio é uma invenção sionista. Há iranianos que pulam a cerca? Simples, basta massacrar as adúlteras, mesmo que tenham sido estupradas. Há iranianos homossexuais? Eventualmente, "tinha" - já não tem mais. E por aí vai, para todos os dissidentes, externos e internos.
Ultimamente, em Genebra, quando Ahmadinejad falou, os diplomatas ocidentais deixaram a sala. Os brasileiros apenas emitiram uma nota de repúdio. Três razões:
1) O Irã é um bom comprador no Oriente Médio, e dinheiro não tem cheiro. Discordo desse argumento neoliberal: o dinheiro tem cheiro, sim, sobretudo quando vem numa mala de carniças.
2) Ahmadinejad extrapola porque está em campanha e se endereça à sua base eleitoral. Quer dizer que ele se sustenta numa base que pensa como ele? Pior ainda.
3) Campeão da coexistência de diferenças (étnicas, religiosas e infelizmente econômicas), o Brasil pode ser um valioso mediador de conflitos. Ótimo, mas o que significa mediar? Por uma limitação da qual não quero me desfazer, eu não consigo ponderar os problemas do mundo sem pensar nos indivíduos. E, conversando com Ahmadinejad, seria assombrado pela visão de uma mulher tremendo de medo, num porão, incapaz de invocar seu deus porque, segundo lhe ensinaram, ele está inteiramente com um grupo de barbudos que, sentados no quarto de cima, tomam chá e decidem quando ela será apedrejada. É um pensamento que me dá nojo.
Reli os artigos que Michel Foucault escreveu para o "Corriere della Sera", durante duas viagens ao Irã, em 1978, no começo da "Revolução" Iraniana (em "Dits et Ecrits vol. 2, 1976-1983", Gallimard, e, em inglês, "Foucault and the Iranian Revolution", University of Chicago).
Foucault me ensinou a enxergar a mão furtiva do poder, mesmo nas sociedades aparentemente "livres".
Como foi que ele escreveu uma apologia entusiasta do que já prometia ser um regime totalitário como poucos na história?
No sábado passado, neste espaço, Antônio Cicero também voltou a esses escritos de Foucault -talvez inspirado pela visita iminente. Cicero argumentou que o relativismo libertário (a ideia de que não temos o direito de julgar regimes de verdade diferentes do nosso) levou Foucault a defender um fundamentalismo que não reconhece nenhuma verdade que não seja a dele. Concordo. O relativismo só faz sentido se ele for uma exceção à sua própria regra: todos os regimes de verdade são respeitáveis, salvo os que não respeitam a verdade dos outros.
Mas o que mais me impressionou, relendo Foucault, foi que, naquelas viagens, ele não ouviu nenhuma voz de dissenso. Só percebeu a perfeita unanimidade de um povo desejoso de se refundar "espiritualmente", além de suas diferenças políticas. Talvez ele tenha saído de Paris já decidido a encontrar, na "Revolução" Iraniana, o protótipo de uma nova esperança coletiva.
Aparentemente, vale também para Foucault: sermos indivíduos é uma tarefa árdua, que suscita a nostalgia permanente de uma coletividade em que poderíamos, enfim, descansar. Algo assim: que venha a "vontade geral" com a qual sonhava Rousseau e nos permita renunciar por um tempo a nossas responsabilidades singulares!
Pois bem, Ahmadinejad nos lembra que a "vontade geral" se constrói sempre sobre os cadáveres dos que não concordam.
Foucault achava que a psicanálise, levando-nos a falar sobre os desejos sexuais, abre a porta para que o poder se insinue em nossa vida privada. Pode ser, mas, para mim, o legado irrenunciável da psicanálise é sobretudo a necessidade de pensar nas pessoas uma por uma, sem ilusões e entusiasmos coletivos, ou seja, sem esquecer aquela mulher que, no porão, ainda está esperando para saber a que horas será apedrejada.
Presidente Lula, caso Ahmadinejad seja reeleito e venha ao Brasil, na hora da foto oficial, peço-lhe, por favor, que o senhor pense nessa mulher e se abstenha de sorrir.
Opinião - Rio de Janeiro - Carlos Heitor Cony: Desculpa esfarrapada
RIO DE JANEIRO - O presidente do Irã, cujo nome é tão complicado que me recuso a escrevê-lo, cancelou em cima da hora a sua visita ao Brasil e a alguns países aqui do segundo andar da geografia mundial. O argumento foi tão esfarrapado quanto a própria cara presidencial, que tem a seu favor um único detalhe simpático: aboliu a gravata, mesmo em cerimônias oficiais.
A desculpa protocolar foi a da situação interna do Irã. O país atravessa um período eleitoral, e não fica bem a um candidato viajar ao exterior em plena campanha presidencial. Acontece que tanto a eleição naquele país como a viagem à América Latina estavam agendadas havia muito.
O motivo do cancelamento foi a pisada de bola do presidente iraniano em recente foro internacional, quando expressou um sentimento racista em relação a Israel, motivando a saída de diversos representantes europeus daquela reunião.
É evidente que ele tem o direito de defender a causa dos palestinos que se sentem prejudicados historicamente, desde a criação do Estado judeu. Mas não se trata de um problema racial ou religioso. Ninguém no Oriente Médio está brigando por causa de Moisés ou de Maomé, por causa da santificação de um sábado, para os judeus, ou de uma sexta-feira, para os maometanos.
A briga é mais antiga. Na realidade, é a mais tradicional na história dos povos: ocupação de território. Nem raça nem culto estão em jogo. Judeus e árabes são primos de sangue, descendentes de um tronco comum, podem viver e vivem pacificamente em diversas regiões do mundo.
Com a sua desastrada fala em hora e em ambiente impróprios, numa reunião internacional em que o clima deveria ser o mais cordial possível, o presidente do Irã aumentou desnecessariamente um fosso que já é trágico demais.
Mundo - Desistência do Irã é "alívio", diz ministro
Para Vannuchi, dos Direitos Humanos, são "gravíssimas" as teses de Ahmadinejad
Ele lamenta, porém, que Lula tenha perdido chance de manifestar contrariedade com negação do Holocausto, conforme teria prometido
MARCELO NINIO
DE GENEBRA
O cancelamento da visita ao Brasil do presidente do Irã, Mahmoud Ahmadinejad, causou desconforto no Itamaraty, mas foi festejado em outros setores do governo. "Foi um alívio", admitiu o ministro Paulo Vannuchi, da Secretaria Especial dos Direitos Humanos.
O discurso incendiário que Ahmadinejad fez recentemente em Genebra, chamando Israel de racista e questionando o Holocausto, tornou o momento desfavorável para a visita, acredita Vannuchi.
"É gravíssimo que um chefe de Estado coloque o Holocausto em questão em 2009", disse o ministro. "É como expressar simpatia com Hitler."
Vannuchi disse não saber se a desistência iraniana foi um troco às críticas que o governo brasileiro fez ao discurso de Ahmadinejad durante a Conferência contra o Racismo da ONU, em Genebra. Mas garantiu que o governo manifestaria sua insatisfação durante a visita.
"O presidente Lula prometeu que tocaria no assunto na semana passada, diante de mim e do presidente do Conselho de Direitos Humanos da ONU", disse Vannuchi.
Mal-estar
A razão alegada por Teerã para adiar a visita sem marcar nova data foi a de que o presidente estaria ocupado com compromissos ligados ao pleito de 12 de junho, quando tentará a reeleição. O que é certo é que a controvertida passagem de Ahmadinejad por Genebra, há quase duas semanas, causara mal-estar entre Brasil e Irã.
Na véspera da conferência, a Embaixada do Brasil em Teerã fizera um apelo ao presidente iraniano para que moderasse seu discurso, mas não foi atendida. Do pódio da ONU, Ahmadinejad manteve os ataques a Israel, o que provocou uma debandada dos diplomatas da União Europeia e tumultuou a conferência.
A delegação brasileira não se retirou, mas depois condenou o Irã no plenário da ONU. O Itamaraty também emitiu nota reiterando a crítica, além de convocar o embaixador iraniano para dar satisfações.
Apesar de admitir que a desistência iraniana foi "um alívio do ponto de vista dos direitos humanos", Vannuchi não era contra a visita de Ahmadinejad. Ele acha que seria uma boa oportunidade para o governo mostrar a sua posição. "O Brasil não pode ficar omisso."
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