Extraído de: SCHMIDT, Francis. Espacialização. IN: ---. O pensamento do Templo. De Jerusalém a Qumran. Trad. Paulo Meneses. São Paulo: Loyola, 1998. p.18-21. |
Disparidades regionais e flutuações históricas que exprimem em particular a multiplicidade dos nomes dados a esse território polimorfo, quer seja descrito do exterior por observadores como Heródoto, por geógrafos como Estrabão, por naturalistas como Plínio, o Velho, quer designado do interior por uma administração estrangeira — lágida, selêucida ou romana — ou pelos próprios judeus, o uso corrente, assim como a nomenclatura oficial, apresenta uma diversidade desconcertante.
De todas essas denominações, reterei apenas três, que atestam as legendas de três moedas. A primeira é um grande bronze posto em circulação em Naplusa, em 159-160. Na frente, o busto de Antonino, o Piedoso; no verso, um templo no cimo do monte Garizim, acompanhado da legenda grega Neapoleôs Syrias Palaistinês. A segunda moeda é um sestércio de bronze, datado de 71, com o busto de Vespasiano na frente; no verso, uma palmeira, ladeada pelo imperador à esquerda e por uma mulher judia cativa à direita, está rodeada pela legenda: Judaea capta. A terceira é uma tetradracma da segunda guerra judaica. Na frente, a fachada tetrastilo do Templo de Jerusalém; no verso, o lulav e o etrog, que fazem referência à festa de Sukkot, estão circundados pela legenda, em escrita paleo-hebraica: “Ano 1 da redenção de Israel”. Três moedas, portanto três denominações diferentes: Palestina, Judéia, Israel[1].
Literalmente, Palaistinê é o nome grego que designa o país dos filisteus. Em um comentário sobre a tábua dos povos de Génesis 10, que enumera as diversas regiões do mundo ocupadas pelos filhos de Noé, Flávio Josefo diz que Filistinos, um dos descendentes de Cam, é o único que se instalou em um país que leva o nome de seu fundador: “Com efeito”, escreve, “os gregos chamam Palestina à parte que lhe coube” (Antiguidades, 1, 136). Já no testemunho de Heródoto (Histórias, VII, 89), Palestina é o nome dado à parte da Síria onde habitam os fenícios, e a toda a costa até o Egito. Igualmente, o geógrafo Pompônio Mela (Chorographia I, 11, 63) e Plinio, o Velho (História natural, V, 69), designam assim a faixa costeira que se estende da Fenícia ao Egito. Mas tomado em uma segunda acepção, igualmente atestado por Heródoto, o termo estende-se a toda a região que está atrás, e então compreende o conjunto da Síria meridional: “Os fenícios e os sírios da Palestina reconhecem, eles próprios, ter aprendido dos egípcios o costume da circuncisão” (Histórias, II, 104, 3)[2]. Aristóteles admira-se com as fábulas que contam sobre um lago da Palestina onde flutuam na superficie todos os corpos de homens ou animais que nele são mergulhados, e que é tão salgado que nenhum peixe pode viver ali (Meteorológicos II,
A região localizada em torno de Jerusalém, onde se estabeleceram os judeus ao voltar do exílio, foi nomeada Yehudah — traduzido por Iudaia nos Setenta —, por referência ao antigo reino de Judá. No fim do período persa, entre 360 e 331, as moedas de prata emitidas pelo governo da província da Judéia trazem a legenda YHD, Yehud na escrita aramaica antiga[3]. Na época selêucida, a Judéia designa o território habitado pelo ethnos
Quando Ezequiel anuncia o retorno dos exilados ao país de seus pais, chama esse país “terra de Israel”. Ali, o povo e seu Deus serão reunidos[6]. Assim, em sua acepção territorial, Israel não se opõe mais a Judá como o reino do norte ao reino do sul. No decorrer de sua história, o nome conserva em geral essa conotação particular — uma terra dada por Deus a seu povo — e se opõe ao país do exílio ou ao das nações estrangeiras. Gravando sobre suas moedas o termo “Israel” e não “Judéia”, os rebelados da primeira e da segunda guerras judaicas fazem mais que declarar a independência de seu território; escolhendo esse termo, afirmam-se como herdeiros da terra ancestral e sagrada. Conforme a regra de que “todo mandamento que é dependente do país só pode se aplicar no país” (Qiddushin, 1,9), quando a Mishnah pergunta sobre os limites no interior dos quais se aplicam as prescrições do Levítico referentes ao ano sabático (Sheviit, 6,1), ou as dos Números sobre o imposto sobre a pasta do pão (Halla, 4,8), a Mishnah estabelece que só se aplicam na ‘Erets Israel. No entanto é preciso compreender que se trata aqui de um território de fronteiras sem relação com nenhuma realidade histórica. Enquanto essa designação é atestada com muita freqüência nos escritos rabínicos, é significativo constatar que o termo “Palestina”, ao contrário, raramente é encontrado.
Esses três nomes atestam que o território habitado pelos judeus, mas constituído de regiões tão díspares como a Judéia propriamente dita, a faixa costeira, a Galiléia e a Peréia, foi percebido como formando um conjunto próprio, distinto não só dos países vizinhos mas também das comunidades judaicas da diáspora. É, portanto, suscetível ser um dos referentes sobre os quais se funda o sentimento de pertença a uma mesma comunidade. Contudo, esses três nomes remetem a três percepções muito diferentes de uma mesma realidade. “Palestina” é o nome dado pelos estrangeiros à comunidade judaica. Embora consagrado pela tradição historiográfica — que opõe correntemente o judaísmo palestino ao da diáspora —, não dá conta da relação da comunidade judaica com seu território durante o período do segundo Templo. Tratando-se de uma pesquisa sobre a identidade judaica, essa primeira designação está, por assim dizer, fora do jogo. “Judéia” é empregado tanto na linguagem corrente como na nomenclatura oficial, em hebraico e também em aramaico, em grego e
[1] Sobre o conjunto dos nomes dados à Palestina: Abel 1933, I, pp. 3 10-332. Sobre a oposição entre “Judéia” e “Palestina”: Feldman 1990, pp. 1-
[2] Segundo Flávio Josefo, Antiguidades, VIII, 262; Contra Ápio, 1, 168 ss., esses sírios da Palestina são exatamente os judeus: ver Stern 1976 (onde se encontrará um comentário magistral de todos os outros textos gregos e romanos aqui citados), I, pp. 2-
[3] Sobre essa cunhagem de moeda da província de Judéia: Mildenberg 1979, pp.183-196.
[4] Plinio, História naturalis, V,70; Flávio Josefo, Guerra, III, 5 1-55 (a Judéia propriamente dita); III, 143, 409 (a Judéia em sentido amplo).
[5] Assim Mishnali, Cheviit, 9, 2; Ketubbot, 13, 9; Babba Batra, 3, 2.
[6] ‘Erets Israel. Sobre uma análise semântica do vocabulário da “terra” (‘admat Israel e ‘erets Israel) em Ezequiel, ver Keller 1975, pp.481-490.
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