Antiga capital do 3º Reich, cidade acolhe judeus da ex-União Soviética e Europa Oriental e começa a apagar seu passado de intolerância
OLIVIER GUEZ
A capital alemã passa por uma renovação judaica impressionante. Ela não se limita à valorização do riquíssimo passado judaico da cidade, narrado pelo Museu Judaico do bairro de Kreuzberg, uma realização notável do arquiteto americano Daniel Libeskind, nem ao reconhecimento dos crimes passados, simbolizados pelos impressionantes vãos de cimento cinza do vasto labirinto de sepulturas anônimas do memorial do Holocausto, onde turistas e curiosos se acotovelam a poucos metros do portão de Brandenburgo.
Numa manhã de sábado
Uma yeshiva (centro de estudos) financiada pela Fundação Lauder, norte-americana, foi erguida no bairro, e a maior sinagoga da Alemanha, situada na Rykestrasse, foi reaberta em agosto do ano passado. "Durante décadas, os judeus da Alemanha foram homens e almas feridos, atingidos por tormentos terríveis. Foi a chegada dos [judeus] russos que mudou tudo."
Na primavera de
Seguiu-se então um dos fenômenos mais surpreendentes da Alemanha contemporânea, embora também um dos menos conhecidos: a chegada, em apenas 15 anos, de mais de 200 mil judeus, muitos se fixando em Berlim, cidade mítica no imaginário dos judeus soviéticos e onde vivia uma grande minoria de idioma russo. Yuri Gurzhy, homem de 30 e poucos anos e cabeça raspada, originário de Kharkov (Ucrânia) e que faz parte das noitadas "Russendisco", não chegou a se aproximar da comunidade religiosa. Mas reivindica sua condição judaica, que se expressou plenamente em Berlim e que ele exprime em sua música. No álbum "Funky Jewish Sounds", Yuri e seus acólitos do grupo Shtetl Superstars entram no clima festivo original da música "klezmer".
"Meu avô tinha uma coleção fabulosa de discos de música iídiche, e aquele foi o som que acompanhou toda minha juventude. Os alemães a escutam religiosamente, como se fosse o som do Holocausto, dentro da representação trágica que se costuma fazer do povo judeu. Acontece que, na Europa Oriental do início do século, os músicos "klezmer" eram rebeldes, músicos errantes freqüentemente bêbados -mais ou menos o equivalente aos roqueiros dos anos 1950."
Como os Shtetl Superstars, Rimon -ou DJ Sugar Ray- eletriza as pistas de dança de Berlim. Mas seu público é bem diferente: ele é o grande animador das noitadas da comunidade judaica berlinense, depois de ter sido presidente do grêmio de estudantes judeus da Alemanha.
Ele chegou da Lituânia em 1990, quando tinha 13 anos. Instalado na "Nazilândia" sem saber uma palavra de alemão, seu início profissional foi difícil. Isolado na escola, encontrou sua salvação na comunidade judaica. "As atividades para os jovens foram essenciais para minha integração", contou. Com o passar do tempo, Rimon acabou enxergando a sociedade alemã com menos preconceitos e apaixonou-se por Berlim.
Jan Ofmanis já não tem idade para curtir os inúmeros clubes da cidade. Ex-professor de economia na Universidade de Riga, ele hoje desfruta de uma aposentadoria tranqüila às margens do Spree, recebendo dez vezes mais do que ganharia na Letônia. Antes de migrar para Berlim, dez anos atrás, esse veterano do Exército Vermelho já não se sentia à vontade em seu país natal.
Aprendi a língua ainda pequeno, na escola judaica, e a falava com meus avós, cujas famílias eram originárias da Alemanha. Na Letônia, os judeus falavam o iídiche e o alemão, o idioma da alta cultura."
Engenheiros, técnicos e economistas com freqüência têm de se resignarem a abrir pequenos comércios ou então se tornarem motoristas de táxi. Já os mais jovens, que chegaram a Berlim ainda crianças, costumam estar bem integrados, tanto na comunidade judaica quanto na sociedade alemã. Mas o pequeno mundo dos judeus berlinenses não é composto unicamente de pessoas vindas da ex-União Soviética.
A cidade atrai artistas e escritores judeus de todo o mundo, alguns deles renomados, como Imre Kertész. Prêmio Nobel de Literatura e sobrevivente de Auschwitz, ele decidiu radicar-se em Berlim para buscar a inspiração que não conseguia encontrar
Nessa cidade que não esconde seu passado e em que a lembrança do Holocausto é onipresente, Kertész, cuja obra é marcada por inteiro pela experiência dos campos de concentração, mergulha fundo para traduzir suas feridas. Nesses últimos anos, no outono de suas vidas, velhos judeus alemães que tinham partido para o exílio décadas atrás também retornaram a Berlim. É como se não tivesse se apagado nunca a esperança de um dia retornar a sua cidade natal e fechar o parêntese doloroso.
Entre eles, Werner Max Finkelstein, octogenário brincalhão e fumante impenitente. Ele voltou a Berlim em 1999, após uma vida palpitante e repleta de aventuras, 60 anos depois de ter deixado a cidade em meio à catástrofe. Por que deixou Buenos Aires e seus filhos? "Nunca deixei de pensar na Alemanha. Durante essas décadas, meus pés estiveram na Argentina, meu coração, em Jerusalém, e minha cabeça,
Uma nova geração de judeus alemães está surgindo na capital, a primeira desde a República de Weimar. Ou, mais precisamente, uma nova geração de judeus berlinenses, de tal forma esses jovens estão ligados a sua cidade de adoção, uma metrópole mais aberta e cosmopolita que as outras cidades alemãs. Assim, Oskar Melzer, príncipe da noite berlinense, dirige um dos clubes emblemáticos da cidade, o Week End, na Alexanderplatz. Tendo chegado a Berlim há dez anos, vindo de Munique, ele se sente muito à vontade na cidade e não vê nenhuma contradição entre ser judeu e berlinense.
"Em Berlim, encontrei minha "Heimat", minha pátria, minha casa. Não tenho problema nenhum de consciência em lhe dizer que sou alemão, que amo a língua e a cultura deste país. É essa a grande diferença entre minha geração e a de meus pais, nascidos logo após a guerra."
A jovem jornalista Shelly Kupferberg, nascida
Shelly Kupferberg admite: "Em
Tradução de Clara Allain.
Folha de São Paulo, Caderno +mais!, em 17/02/2008.
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