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Rio de Janeiro, RJ, Brazil
Cláudia Andréa Prata Ferreira é Professora Titular de Literaturas Hebraica e Judaica e Cultura Judaica - do Setor de Língua e Literatura Hebraicas do Departamento de Letras Orientais e Eslavas da Faculdade de Letras da UFRJ.

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terça-feira, 11 de março de 2008

Meu pai, se me permitem

CORREIO BRAZILIENSE
BRASÍLIA, DF, 10 DE MARÇO DE 2008

Meu pai, se me permitem


Jaime Pinsky
Historiador e editor
www.jaimepinsky.com.br


A
brahão Pinsky nasceu em 1910, no que era a Polônia, e foi trazido ainda criança ao Brasil por seus pais, indo morar na região de Passo Fundo, no norte do Rio Grande do Sul. De tradição agrária, os Pinskys começaram a plantar trigo, obtendo excelente produção. Contudo, a política de preços do governo brasileiro privilegiava, então, o produto importado, levando à bancarrota os que teimavam em produzir trigo em nossas terras. A família passa, então, a plantar alfafa e amendoim, o que, no mercado, apenas dava para a subsistência do pai, mãe e seis filhos.

Abrahão, o caçula, sai então do Rio Grande e da agricultura e vai para São Paulo tentar a sorte. A escolha de Sorocaba se dá por motivos fortuitos: um conhecido seu era comerciante no local. Sorocaba é, nessa época, uma cidade industrial que se caracteriza também por um comércio de produtos importados destinados aos ricos da cidade — casimira inglesa, linho irlandês, seda italiana, porcelana chinesa, rendas espanholas, etc. O grande contingente de operários não encontra uma rede comercial que lhe atendesse.

É a hora e a vez dos mascates. Com pequenos pacotes, eles iam de casa em casa para oferecer roupas, cobertores, toalhas, produtos da ainda pouco desenvolvida indústria nacional, aos operários que poderiam pagar em oito, 10 ou 15 parcelas. O risco de crédito era grande, não havia fichas cadastrais, fiadores ou garantias. Havia, em troca, a honestidade do trabalhador que, na imensa maioria das vezes, pagava pontualmente. O mascate, caminhando muitos quilômetros, todos os dias, debaixo de chuva ou do sol, em ruas sem calçamento, com barro ou com poeira, desempenhava função social primordial: distribuindo produtos a brasileiros, promovia o desenvolvimento da indústria nacional; atendendo o operário, integrava-o, como consumidor, no processo de circulação de mercadorias.

Abrahão Pinsky foi um desses mascates. Mesma labuta, mesmo empenho, mesmo papel social. Em algo, contudo, foi diferente. Assim que reuniu algum dinheiro, em vez de, como tantos outros, abrir uma loja no centro, preferiu instalar-se num bairro operário. Alugou da Sociedade Beneficiente 25 de Julho seu salão, na rua Hermelino Matarazzo, perto das oficinas da Estrada de Ferro Sorocabana, a poucas quadras da Fábrica Santo Antônio e no caminho da Fábrica Santa Rosália. Em 1950, tendo que entregar o prédio à locadora, comprou o terreno contíguo e construiu um sobrado — loja embaixo, residência em cima, como se fazia na época.

A "loja do Abrahão" (ninguém a conhecia pelo nome oficial: Casa de Móveis Record) era muito mais que um estabelecimento comercial. Os fregueses se reuniam para falar dos problemas de serviço, de família, das alegrias e das tristezas. Havia sempre um tabuleiro de damas, uma garrafa de água gelada, um cafezinho recém-passado e meia dúzia de cadeiras para que as pessoas pudessem se sentar.

A clientela da loja era cativa, e a relação comerciante/freguês de caráter pré-capitalista, muitas vezes. "Freguês velho que não paga é porque não pode", dizia "seu" Abrahão. Nem nos períodos de inflação galopante a loja tomou caráter muito empresarial. O dono da loja não trocava os amigos por um possível lucro.

Nunca enriqueceu. Orgulhava-se do Brasil e de Sorocaba. Preferia um prato de feijão com arroz à melhor comida tradicional de sua terra de origem. Quando algum jovem, percebendo seu sotaque, lhe perguntava de sua origem, dizia ser brasileiro e "mais brasileiro que você, rapaz, já estou aqui há mais de trinta anos..."

Teve quatro filhos. Todos estudaram em escolas públicas locais. Teve 11 netos: professores, engenheiros, administradores, jornalistas. Morreu muito jovem, com 59 anos, em 1970.

Abrahão Pinsky foi, de certa forma, um homem do passado. Nunca viajou de avião. Mal conheceu a TV em cores. Computador e internet, nem pensar. Mas esses não são motivos suficientes para ele ainda ser tão lembrado, dando nome a uma rua perto do Horto Florestal de Sorocaba.

Considerava o acesso à cultura um direito e um dever de todos. Lia sempre antes de dormir. Achava que educação dos filhos não podia ser terceirizada. Relacionava-se com as pessoas não pelo que elas possuíam, mas pelo que eram. Sentia-se mais à vontade com os humildes do que com os poderosos. Dinheiro para ele era objeto de troca e não de adoração. Não sei bem por que, pensei que alguns leitores gostariam de conhecê-lo.

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