José Luis Barbería
Pelas mãos da Cruz Vermelha Internacional, 200 crianças polonesas roubadas pelos nazistas durante a Segunda Guerra Mundial chegaram a Barcelona em 1946, vindas do campo de refugiados de Salzburgo (Áustria). Algumas tinham sido escolhidas por seus traços físicos pretensamente arianos e foram arrancadas de seus pais; outras eram filhas dos trabalhadores escravos utilizados até a exaustão na indústria de guerra alemã. Também havia crianças geradas no diabólico projeto Lebensborn ("a fonte da vida")- granjas de procriação e educação nazistas destinadas a criar a super-raça, nas quais mulheres selecionadas eram obrigadas a ter relações com oficiais alemães.
Até agora desconhecida, a história dessas crianças polonesas revolve cruelmente a ferida moral da humanidade, porque foram despojadas de seu nome, de sua memória e sua língua, germanizadas e, às vezes, entregues a famílias alemãs e novamente arrancadas desses lares ao fim da guerra.
Muitas perderam irremediavelmente a possibilidade de recuperar sua identidade e família na fogueira onde os nazistas em retirada destruíram os arquivos que registravam o delírio da recriação da raça ariana. Como constatou este jornal, seis décadas depois, a ferida do limbo da identidade continua supurando na alma dos sobreviventes, "espanhóis de coração", e palpita dolorosamente com a recordação das experiências traumáticas. Tiveram de se resignar a não saber quem são seus pais e irmãos, a desistir para sempre de seu afeto e a viver com esse vazio dilacerante, alguns na suspeita de que seus pais podem ter sido soldados alemães.
Todas chegaram a Barcelona com o enigma de sua origem, mas só as que haviam guardado na memória uma recordação nítida - "mamãe usava um casaco marrom e chorava, mas a cerca de arame nos separava" - ou possuíam um objeto - a fotografia dobrada que a mãe lhe deu às escondidas na despedida, a medalha da Virgem... - tinham a prova de uma identidade perdida.
Escutar seus sofrimentos durante a guerra é assomar-se a um abismo de angústias e terrores, de fome e violência. Compreende-se que os órfãos poloneses desnutridos ou doentes tenham encontrado na pobre Espanha do pós-guerra o paraíso inesperado que ainda buscam 62 anos depois.
O tempo acabara por sepultar aqueles fatos sob uma capa de esquecimento tão compacta que a mera confirmação jornalística da chegada dessas crianças a Barcelona parecia uma empreitada impossível. Os dados transmitidos na época por pessoas já falecidas logo se revelaram insuficientes ou imprecisos. E buscar nos arquivos da Cruz Vermelha em Madri e Barcelona, consultar a embaixada e os consulados de Varsóvia e indagar na comunidade polonesa mostrou-se um exercício infrutífero. Ninguém tinha notícia dessas crianças.
Quando o panorama convidava à desistência e a história parecia destinada a engrossar a pasta de iniciativas fracassadas, um arquivista diligente da Cruz Vermelha em Genebra, que se dispôs a procurar além das datas estipuladas, exumou a lista de um dos grupos que chegaram à cidade. Era verdade! A consulta a hemerotecas, agora no ano e nas datas corretas, mostrou que essas crianças entre 2 e 12 anos também tinham rosto e saudaram disciplinadas, com vivas à Espanha, do convés do navio mercante JJ Sister, que atracou em Barcelona no dia 24 de abril de 1946.
Foram alojadas inicialmente no número 49 da rua Angli, uma antiga delegacia da Frente Popular que o Auxílio Social franquista (organização beneficente) havia habilitado como residência infantil, e depois na residência Vallcarca, também no bairro da Bonanova. Os jornais espanhóis da época apresentaram a chegada dos "órfãos de guerra poloneses" como prova do caráter humanitário do regime de Franco, quando na verdade o gesto correspondeu à necessidade do governo de se congraçar com os aliados vitoriosos e fazê-los esquecer suas simpatias pelos alemães derrotados. Nas negociações diplomáticas promovidas pelo Vaticano, a ditadura franquista assumiu o compromisso de facilitar o alojamento e os cuidados necessários, enquanto o governo polonês no exílio, estabelecido em Londres, que não reconhecia o poder comunista estabelecido em Varsóvia, se encarregaria da educação e "polonização" das crianças.
A experiência se estendeu por dez anos, período em que a maioria das crianças, já adolescentes ou jovens, foi devolvida à Polônia, muitas vezes contra sua vontade, e entregue a parentes que haviam sobrevivido. O que aconteceu com aqueles cujas origens não puderam ser estabelecidas? E o que terá acontecido com essa menina loura de olhos azuis, Teresa Lindner, que segundo o jornal "Pueblo" estava noiva de um espanhol estudante de engenharia?
Seguir o rastro dos órfãos poloneses não devolvidos a seu país era como perseguir a sombra de nuvens caprichosas que tanto se dirigiam para a Polônia como à França, EUA ou Reino Unido. Da lista de nomes colocados em busca sistemática na Internet, somente o de Aleksandra Gruzinska obteve uma resposta positiva no Google. Havia uma Aleksandra Gruzinska professora de francês na Universidade Estadual do Arizona (EUA), e na página figurava seu endereço eletrônico. Era a última oportunidade, e era preciso acreditar na sorte, por mais improvável que parecesse que uma pessoa de 75 anos continuasse profissionalmente ativa. O fato de manter seu sobrenome de solteira nos EUA também significava que não havia se casado, suposição que reduzia ainda mais as probabilidades.
"A senhora é a Aleksandra Gruzinska que chegou a Barcelona em 1946 por intermédio da Cruz Vermelha?" Como ocorreria depois com os demais interlocutores, a mensagem produziu um efeito devastador e um turbilhão emocional. Lembrar o passado nesses casos é abrir a caixa de Pandora das dores e traumas sofridos, dar rédea solta a recordações amargas e secretas que haviam sido convenientemente domadas e guardadas sob sete chaves. Ela tomou um tempo, avaliando se estava disposta a deixar-se envolver pela onda gigante que se formara em seu interior, mas cinco dias depois respondeu: "Sim, sou uma das meninas de Vallcarca". E deve-se dizer que poucas vezes no exercício desta profissão se reage a uma mensagem com tal exclamação de alegria.
Aleksandra não pôde ou não quis então ir além ("Me despeço com muita emoção", disse), mas depois encaminhou o jornalista para um manancial de informações, o tesouro documental dos "órfãos poloneses de Barcelona", poderíamos dizer, que Cristina Tozer, filha da chanceler do consulado polonês em Barcelona, Wanda Tozer, guarda em sua casa
"Às vezes eu encontrava a sala forrada de corpos", lembra sua filha Cristina. "Minha mãe lhes dava documentos falsificados e dinheiro para que pudessem atravessar a Espanha." A senhora Wanda foi a mãe espiritual das crianças roubadas pelos nazistas que chegaram à Espanha, além de sua professora de literatura e de polonês. Era a ligação entre as autoridades espanholas e o governo polonês no exílio.
Durante aqueles anos, a chanceler foi anotando as revelações que extraía de seus contatos com as crianças - "eu também era muito pequena e tinha ciúme dos cuidados que minha mãe lhes dava", revela Cristina -, até decifrar o segredo que elas guardavam. Descobriu que em sua grande maioria as crianças procediam da Silésia, região que os alemães consideravam germânica e, portanto, potencialmente suscetível de abrigar os genes da raça ariana. Descobriu que muitas das crianças haviam tido seus sobrenomes trocados por outros, às vezes depreciativos, como Koziok (cabrito); que haviam apagado suas lembranças familiares e proibido o uso de sua língua; que tinham sido roubadas e humilhadas; que haviam passado por diversos orfanatos e que as maiores tinham sido abandonadas quando a guerra chegava ao fim e obrigadas a viver como selvagens nas florestas.
Wanda Tozer intuiu então o que os historiadores demorariam muito para comprovar: que na região noroeste da Polônia, incorporada ao Terceiro Reich com o nome de Wartehegau, as crianças de aspecto nórdico eram consideradas de origem alemã e foram germanizadas. Em seu livro "O Trauma alemão", Gitta Sereny cita a ordem das SS número 67/1, na qual se menciona a "grande quantidade de crianças na Polônia que por seu aspecto são potenciais portadoras de sangue valioso para a Alemanha". A jornalista austríaca afirma que nos atos punitivos contra a resistência a norma era executar todos os homens e enviar as mulheres para os campos de concentração, enquanto as crianças de seis meses a 2 anos eram enviadas para os lares Lebensborn e as maiores de 12, mandadas a trabalhar.
"A Gestapo levava as crianças à força, principalmente quando correspondiam claramente aos critérios de raça", escreveu na época Wanda Tozer. "Os seis irmãos Wieczorek foram arrancados brutalmente dos braços de seus pais. Aleksandra Gruzinska, que seus companheiros chamavam de Olga, mal teve tempo de abraçar sua mãe. Bronislaw Zimmy foi tirado de um orfanato para ser germanizado. Jerzy Kaczynski e sua mãe foram levados à Alemanha para trabalhar duramente. Jadwiga Bronowicka viu de seu esconderijo em um palheiro os russos assassinarem seu pai..."
São textos até hoje inéditos, que Cristina Tozer encontrou em sua casa quando sua mãe morreu, em 1990. Em todos eles está latente a sensibilidade de uma mulher polonesa patriota e católica, capaz de compreender a dor da "segunda ruptura" que sofreram as crianças dadas em adoção a famílias alemãs e resgatadas pelos aliados no fim da guerra. "Não queriam ir com esses poloneses dos quais tinham ouvido dizer tantas barbaridades, e era preciso recuperá-las à força; elas mordiam ou davam pontapés em seus libertadores", anotou Wanda. Às vezes só a música, as canções polonesas de ninar ou os cantos de Natal conseguiam penetrar nos espaços enclausurados da memória e acender a fagulha da recordação.
Apesar da imagem que trazem as fotografias de imprensa da época, as "cabecinhas louras que se espremem umas com as outras, vestem roupa militar e gorros americanos" que chegaram a Barcelona em diversas expedições estavam muito longe de alcançar o estado de felicidade. "Desenvolveram os instintos de sobrevivência próprios dos ambientes hostis e são desconfiadas, ásperas e egoístas. As meninas mais velhas, mais germanizadas, são exigentes, desobedientes e respondonas, um mau exemplo para as menores, que incitam à rebelião", escreveu Wanda Tozer.
Sua filha lembra que aquelas crianças com as quais compartilhava aulas de polonês tinham sempre fome, mesmo quando acabavam de comer - o apetite insaciável dos que conheceram a fome. "Haviam passado tanta necessidade que guardavam as migalhas de pão embaixo dos colchões para quando chegasse a hora negra do estômago vazio. Além disso, remexiam no lixo da própria residência de Vallcarca e dos arredores, e arrasavam os limoeiros da casa e os pomares vizinhos", comenta. Sem dúvida, como Wanda Tozer observou assombrada, embora as crianças não dividissem as coisas, também não roubavam entre si. À falta de família, muitas ataram com alguns de seus companheiros uma relação fraterna, que às vezes perdura até hoje.
As anotações de Wanda descrevem um quadro psicológico de pesadelos, angústia e depressão, à altura dos traumas e sofrimentos vividos. Crianças transtornadas, entregues à tarefa de destruir; claustrofóbicas que corriam de pijama da residência, acreditando fugir de um bombardeio; pequenos que só acalmam os nervos fazendo tricô.
Pouco a pouco, o tratamento das cuidadoras espanholas e dos professores e padres poloneses começou a dar frutos. Elas gostavam de Barcelona e desfrutavam da praia e do sol. A vida seguiu seu caminho. Nunca esquecerão a noite de 24 de dezembro. Estavam todas juntas com o olhar fixo no firmamento, esperando que aparecesse a primeira estrela que, na tradição polonesa, inaugura o Natal. Muitos anos depois, já casados e com filhos, continuariam telefonando da América, na hora espanhola, para felicitar a senhora Wanda pelo Natal.
Embora a residência Vallcarca fosse e continue sendo um edifício senhorial, sua vida também foi marcada pelo frio e a pobreza. É o que se depreende dos relatórios sucintos que Wanda Tozer elaborava periodicamente, dominando a duras penas seu desespero: "Não há leite no desjejum por falta de verbas. (...) A rotatividade do pessoal, por falta de pagamento, repercute nas crianças. (...) A falta de roupas e de cobertores é premente. Só têm vestidinhos de percal e adoecem por causa do frio. (...) O sapateiro se recusa a consertar os sapatos por falta de pagamento".
Mas o verdadeiro drama era a dúvida que consumia vorazmente as crianças quando chegavam à adolescência. "Quem são meus pais?" "Sabe se minha mãe está viva?" Acostumada a resolver situações difíceis - abrandava os corações dos comerciantes barceloneses ou dos integrantes da comunidade judia polonesa e assim obtinha dinheiro para vestimentas, utensílios de higiene e até presentes de Natal - Wanda abrandava a depressão dos adolescentes convidando-os a merendar em sua casa e tocando piano para eles.
Com o tempo, a rede polonesa APWR de localização de desaparecidos obteve resultados e começaram a chegar as primeiras cartas dos parentes sobreviventes: "Procuramos você há dez anos, volte para casa!" O grupo foi diminuindo aos poucos. Sempre conduzidos por Werner, o mais velho, que nunca deixou de exercer o papel de pai responsável, os irmãos Wieczorek voltaram à Polônia. "Já resta só uma centena. (...) Ela encontrou sua mãe na Inglaterra, Mietek vai para a França. (...) Ficam só 80", escreve Wanda, e começa a se perguntar o que poderá fazer com os demais, na maioria adolescentes e jovens, que ninguém reclama. Sabe que cada beliche desocupado é para eles um novo golpe, um buraco que amplia seu vazio interior, uma nuvem escura que ensombrece seu futuro.
A solução é encontrada nos EUA, na grande colônia polonesa de Buffalo, estado de Nova York. Wanda pensa que apesar de as crianças estarem aprendendo um ofício sempre encontrarão mais possibilidades na América do que na isolada Espanha franquista, que não consegue sair da pobreza. A despedida de Barcelona, a caminho de Madri, de Lisboa e da América, em 6 de julho de 1956, é dilacerante. Choram desconsolados enquanto cantam "Rozproszone polskie dzieci", a canção "das crianças polonesas desgarradas".
Muitos anos depois, algumas ainda censuram amargamente Wanda Tozer pelo fato de tê-las arrancado da Espanha. "Barcelona é nosso paraíso perdido", resume hoje Aleksandra Gruzinska. É o que repetem todas aquelas crianças roubadas que, de Buffalo, do Arizona, da Virgínia, Califórnia ou Queensland (Austrália), aceitaram o convite de "El País" para remexer na memória sob o risco de alvoroçar seus corações. Sim, Barcelona é a palavra mágica, a porta que fechou o inferno de sua infância traumatizada e lhes devolveu o sorriso.
Todos e cada um deles têm um relato extraordinário que não cabe nas páginas de um jornal. Fixemo-nos principalmente naquela menina loura de olhos azuis, Teresa Lindner, que estava noiva de um estudante de engenharia espanhol. Ela vive em Manassas, estado da Virgínia (EUA), casou-se e hoje se chama Teresa Gilbert, tem três filhos e dois netos. Não voltou à Polônia. "Para que voltar se não sei onde procurar? Meu drama é que nunca soube meus sobrenomes. Os alemães me tiraram de casa quando eu devia ter 4 ou 5 anos, e nessa idade os pais não têm outros nomes além de papai e mamãe. Me deram o sobrenome Lindner e sei que no primeiro orfanato estive com minha irmã, que depois nos separaram e nunca mais a vi. Creio que éramos gêmeas, porque tínhamos dois vestidos iguais com um laço azul, que minha mãe nos punha para ir à missa, e nunca sabíamos muito bem qual era de quem, até que manchei o meu com uma maçã. Sei também que tinha um irmão, porque um dia..."
Embora tivesse se preparado animicamente para o encontro, Teresa Lindner explode em soluços, mas continua com a voz entrecortada: "Porque um dia, pouco antes que chegassem os alemães, eu quase cortei um dedo do meu irmão menor e minha mãe ficou muito zangada. Me bateu e perguntou como eu podia fazer diabruras enquanto meu pai estava morrendo. 'Reze para que seu pai não morra', foram suas palavras". Teresa lembra que uma vez foi vê-las no orfanato e se despediu dizendo que voltaria "logo".
Terminou na Áustria, nas mãos de uma família alemã. "Aquela mulher [Teresa não usa a expressão "mãe adotiva"] veio certa manhã me buscar no colégio. Me assustei e pensei que iam me castigar, mas no caminho me contou que havia uns militares em sua casa e que eu só devia responder 'não sei, não sei',
Pergunto-lhe o que aconteceu com aquele namorado espanhol e me diz que romperam quando ela começou a trabalhar nos EUA, mas que voltou a vê-lo 20 anos depois e que ele ainda deve guardar algum objeto seu.
Maxsymiljan Jadoch também não sabe seu verdadeiro sobrenome, só que as razões pelas quais apagaram seu nome podem ser diferentes das que intervieram no caso de Teresa. Ele não tem recordações anteriores à sua vida em um orfanato da Silésia, mas nunca esqueceu que uma mulher que o visitava de vez em quando lhe havia dito que iria buscá-lo quando acabasse a guerra. "Em Barcelona odiei essa mulher com todas as minhas forças", ele diz. "Vivi a adolescência angustiado diante do futuro, torturando-me com as perguntas: Onde estão meus pais? Quem sou eu?"
Ele encontrou sua suposta mãe, uma suíça que ainda vive, mas seria mais correto dizer que encontrou um fantasma. "Há 22 anos", continua Maxsymiljan, "recebi uma carta da Cruz Vermelha alemã com a mensagem de que havia uma pessoa que me procurava. Duas semanas depois me chegou um telegrama de uma mulher que dizia que tinha cuidado de mim no orfanato e que queria me ver. Fui visitá-la na Alemanha, mas essa bruxa não quis me contar a verdade. Tinha medo que se ventilasse o passado e nem sequer quis admitir que era minha mãe. Só me disse que tinham mudado meu sobrenome e que jamais conheceria meu pai. Sei que ela teve um filho com um alemão, e que esse filho, Hans, é extraordinariamente parecido comigo. Não voltarei a vê-la até que me diga quem sou."
Max continua se sentindo estrangeiro nos EUA, mesmo vivendo ali há 52 anos, depois de ter se casado e tido dois filhos. Diz que pertence à Europa, a Barcelona. "Só de ouvir a palavra Barcelona me desatam todas as emoções, porque ali passei os melhores anos da minha vida depois de meu calvário pela Checoslováquia e a Áustria. Sabe que tive uma namorada catalã?" Esse homem de 72 anos cita de cor o nome, os dois sobrenomes e o endereço exato daquele primeiro amor.
Também Josef Szpaczkek, que vive em Queensland (Austrália), lembra daquela "menina preciosa", Antoñita, de Pamplona, que conheceu no sanatório em que esteve hospitalizado. "Decidi aperfeiçoar meu espanhol para poder seduzi-la, mas nos levaram para a América."
Ao contrário de outras crianças roubadas que decidiram negar-se a olhar para o passado, para que a ferida não continuasse sangrando, para que a memória ficasse sepultada sob uma lousa de esquecimento tão pesada que já não pudesse aflorar na consciência, Eric Plocica, que hoje reside em Venice (Califórnia), procurou e continua procurando respostas para suas interrogações. Ele reconstruiu o tortuoso e penoso caminho que seguiu desde seu orfanato em Bielsko (Alta Silésia) até Barcelona; comprovou datas, cidades e países, anotou os bombardeios que sofreram quando as crianças e seus guardiães escapavam dos russos.
Também não negou a seu cérebro as barbaridades que seus olhos de menino contemplaram. "As crianças eram um tesouro nacional e os alemães fizeram o impossível para que não fôssemos parar nas mãos dos russos, até que um dia, ao despertarmos, vimos que nossos cuidadores haviam desaparecido." Engajado na marinha americana, Eric sempre aproveitou quando a Sexta Frota atracava nos portos espanhóis para visitar a "senhora Wanda" e relembrar sua estada em Vallcarca. "Ao chegar a Barcelona, soube que minha vida estava salva. Não me sinto 100% americano, sou mais espanhol que outra coisa, e apesar de a Espanha ter-se americanizado bastante, me encanta o temperamento, o ambiente, o idioma [fala um bom espanhol], a comida, o sol. Essa foi minha pátria."
Ele prefere não falar de suas primeiras recordações. Diz somente que seu caso é mais triste que o de outros e que além disso também não sabe muito bem o que aconteceu. "Eu não tinha família." E como uma infância tão dura afeta a personalidade? Ele responde que as crianças se adaptam melhor que os adultos. "Nunca nos faltaram as lágrimas e sempre nos acompanhou o medo de perder a vida, mas, não sei se por inconsciência ou por quê, confiávamos mais que os maiores em poder sobreviver."
Sobreviveram, e logo apreenderam a valorizar o que realmente conta na vida, depois de ter conhecido as entranhas do inferno humano. Eles sabem de que pasta suja é feita a humanidade. Que as crianças sem nome de Barcelona, feridas de guerra, encontrem sossego na fraternidade universal e no reconhecimento dos que conhecem sua história.
Tradução: Luiz Roberto Mendes Gonçalves
Extraído de:
El País, em 18/05/2008.
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