Uma Buenos Aires sem asas
Entrevista Nathan Englander
Primeiro romance do americano aborda a ditadura argentina pelo olhar de uma família judia
Juliana Krapp
Jornal do Brasil, Caderno Idéias, página 3, em 28/06/2008.
Ele é cabeludo e tagarela. Adora literatura latino-americana, mas confunde um pouco as bolas (cita Cortázar no mesmo rol que Jorge Amado). Explica que planejou escrever sobre Buenos Aires como uma metáfora de Jerusalém. Fez de tudo para fugir dos papagaios mágicos, e acabou dando à luz uma obra preciosa sobre a ditadura na Argentina.
O ministério de casos especiais é o segundo livro de Nathan Englander, o judeu boa-praça que se apresenta na Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), na sexta-feira. Ao lado do argentino Martín Kohan e do gaúcho Vitor Ramil, está na mesa Estética do frio – que ele não faz idéia do que significa.
O romance – seu primeiro, que demorou quase 10 anos para ficar pronto – gira em torno da família de Kaddish Poznan, judeu que ganha a vida apagando lápides de prostitutas e cafetões em um cemitério, a pedido de suas famílias. Seu filho Pato é um dos muitos desaparecidos da ditadura argentina, em 1976.
Em O ministério há trechos do mais inesquecível terror, como a conversa de Poznan com o piloto de avião que assume ter jogado os jovens prisioneiros no Rio da Prata. Mas há também o hilariante, como a passagem em que Poznan aceita uma cirurgia plástica no nariz como pagamento aos seus serviços. Com tamanha habilidade narrativa, Englander vem repetindo o sucesso de seu primeiro livro, Para alívio dos impulsos insuportáveis, a coletânea de contos que o fez ser considerado um dos melhores escritores surgidos nos últimos anos.
O americano conversou por telefone com o Idéias, de sua casa em Nova York. Onde, ele jura, poderia dormir num banco de praça sem nenhum problema.
A história de O ministério de casos especiais é muito forte, dolorosa. Foi sofrido escrevê-la?
– É engraçado, muitas pessoas me perguntam isso, e às vezes eu tenho o ímpeto de dizer logo "não, não". Em outras, digo sim. Porque estamos falando de uma mistura estranha. Escrever é muito normal para mim. E é também inacreditavelmente desafiador, muito forte e ao mesmo tempo aterrorizante de diferentes maneiras. Mas é o que eu mais gosto de fazer. Na verdade, com O ministério de casos especiais aconteceu o oposto do que vinha ocorrendo com meus contos, nos anos anteriores: eu fiquei completamente obcecado por esse romance. Ele me tirou tudo o que eu tinha, e eu passei a viver dentro do livro. Sim, é desafiador. Mas eu não vejo a hora de ser absorvido por um outro livro novamente. E de novamente perder tudo de mim dentro dele, por um longo tempo.
Você nasceu e vive em Nova York, e morou alguns anos em Jerusalém. Por que seu primeiro romance se passa na Argentina?
– Acho que essa resposta só foi ficando clara para mim com o tempo. Não que no início eu não tivesse vestígios dela, mas acontece que o seu sentido vai mudando. Eu vejo agora, com um certo distanciamento, o quanto esse romance é uma metáfora sobre o tempo que estive em Jerusalém. Eu amo as cidades, sou um amante delas. Se um dia eu tivesse que dormir ao léu na Times Square, em Manhattan, acharia ótimo.
E essa metáfora de Jerusalém, do que trata?
– Eu sou um nova-iorquino e me mudei para Jerusalém. São cidades muito diferentes, mas são cidades centrais, intensas. Os países vivem ao seu redor. Ou as evitam. Quando fui para Jerusalém, esperava fazer a paz, colaborar com esse lindo novo mundo de paz no Oriente Médio. Acabei observando as coisas ficarem negras. E eu acho que várias pessoas sabem o que é isso, quando uma cidade se transforma. Mas uma cidade pode continuar amada pelos seus moradores. E eu acho que Buenos Aires é assim, os portenhos são tão dedicados e obcecados por aquela cidade, leais a ela para sempre. Acredito que essa cidade, num sentido histórico, continua sempre se transformando, virando os seus próprios moradores. E eu queria explorar isso: como decisões governamentais influenciam a vida das pessoas, cidades complicadas, família, identidade. Buenos Aires se tornou o lugar perfeito para que a história com todos esses elementos acontecesse, ainda mais naquela época.
Você então chegou muito perto da intimidade argentina.
– Sim, quanto mais tempo eu passava em Buenos Aires, mais eu me tornava obcecado por ela. Pode ter começado como uma metáfora, mas agora eu não poderia ser mais interessado por ela do que já sou. No início ela não era tão íntima do meu coração, mas agora eu me sinto realmente muito próximo. Inclusive da sua história de uma ditadura sangrenta. Como um garoto judeu, o holocausto era ensinado para mim da seguinte forma: "essa é sua memória sobre a história". E às vezes eu de fato me pego pensando sobre o genocídio. E o livro é sobre isso, sobre como nós herdamos nossas narrativas. Nossa família nos dá uma história, nosso país nos dá uma história. Se temos uma religião, ela também nos dá uma história, tudo nos é transmitido. Nesses anos todos obcecado pela época da ditadura na Argentina, ela se tornou muito próxima de mim. É como o Brasil, aquele tempo na América do Sul é uma época terrível, assassina. Eu posso ter começado a escrever sobre a Argentina por um motivo, mas acabei terminando por outro.
Uma curiosidade: você aprecia a literatura argentina?
– Sim, adoro. E isso é um perigo. Enfrento vários desafios quando escrevo um livro. Por exemplo, há uma espécie de sirene que toca quando algo pode ser muito óbvio. Como adoro a literatura da América do Sul, percebi que eu poderia cometer muitos erros óbvios. Quando comecei a escrever, tive que tomar a seguinte decisão: iria escrever sobre a minha Buenos Aires, a minha história, com a minha voz e o que mais esse livro demandasse. Pois eu amo (Julio) Cortázar, (Jorge Luis) Borges, (Gabriel García) Márquez, Jorge Amado. Existem tantos bons escritores na América do Sul que eu precisava ficar me lembrando sempre: ninguém nesse livro terá asas, não haverá anjos, nem papagaios mágicos. Este é o oposto do realismo fantástico do Cortázar. Na minha Buenos Aires, não haverá magia. Eu faço o meu trabalho.
É verdade que você é um workaholic?
– Sim, isso é absolutamente verdade. Sempre converso com meus amigos sobre o quanto eu trabalho. Mas, apesar disso, eles ainda me reconhecem (risos). No metrô ou no restaurante, sempre tem alguém dizendo "olá, Nathan". Então meus amigos acham que, para um workaholic, eu conheço bastante gente. No fim das contas, até que eu saio um bocado e, para um escritor, sou bastante sociável. Alguns de meus colegas não precisam das pessoas. Mas eu não, eu realmente preciso delas, dos meus amigos, preciso sair de casa. No entanto, quando estava escrevendo esse livro, me dedicava a ele literalmente sete dias por semana, dia e noite. Quando começo um livro, o trabalho toma conta de tudo.
Você já esteve no Brasil?
– Bem, seu governo gentilmente pagou minha ida a Paraty. Quando eu preenchi o formulário da viagem, quase marquei não na pergunta sobre se eu já havia estado no país. Mas me lembrei de que, uma certa vez, tive de fazer uma conexão no Rio e passei uma noite na cidade.
O que você espera da festa literária em Paraty?
– Eu sei muito pouco sobre ela. Só ouvi dizer que Paraty é extremamente bonita e que tem uma importância histórica. Todos os escritores que conheço que já foram ao balneário disseram que é um lugar fantástico. Estou muito animado.
Você conhece o trabalho dos escritores Martín Kohan e Vitor Ramil, com quem vai debater na Flip?
– Vou ser sincero: ainda não fiz meu dever de casa. Mas vou tentar, até lá.
Entrevista Nathan Englander
Primeiro romance do americano aborda a ditadura argentina pelo olhar de uma família judia
Juliana Krapp
Jornal do Brasil, Caderno Idéias, página 3, em 28/06/2008.
Ele é cabeludo e tagarela. Adora literatura latino-americana, mas confunde um pouco as bolas (cita Cortázar no mesmo rol que Jorge Amado). Explica que planejou escrever sobre Buenos Aires como uma metáfora de Jerusalém. Fez de tudo para fugir dos papagaios mágicos, e acabou dando à luz uma obra preciosa sobre a ditadura na Argentina.
O ministério de casos especiais é o segundo livro de Nathan Englander, o judeu boa-praça que se apresenta na Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), na sexta-feira. Ao lado do argentino Martín Kohan e do gaúcho Vitor Ramil, está na mesa Estética do frio – que ele não faz idéia do que significa.
O romance – seu primeiro, que demorou quase 10 anos para ficar pronto – gira em torno da família de Kaddish Poznan, judeu que ganha a vida apagando lápides de prostitutas e cafetões em um cemitério, a pedido de suas famílias. Seu filho Pato é um dos muitos desaparecidos da ditadura argentina, em 1976.
Em O ministério há trechos do mais inesquecível terror, como a conversa de Poznan com o piloto de avião que assume ter jogado os jovens prisioneiros no Rio da Prata. Mas há também o hilariante, como a passagem em que Poznan aceita uma cirurgia plástica no nariz como pagamento aos seus serviços. Com tamanha habilidade narrativa, Englander vem repetindo o sucesso de seu primeiro livro, Para alívio dos impulsos insuportáveis, a coletânea de contos que o fez ser considerado um dos melhores escritores surgidos nos últimos anos.
O americano conversou por telefone com o Idéias, de sua casa em Nova York. Onde, ele jura, poderia dormir num banco de praça sem nenhum problema.
A história de O ministério de casos especiais é muito forte, dolorosa. Foi sofrido escrevê-la?
– É engraçado, muitas pessoas me perguntam isso, e às vezes eu tenho o ímpeto de dizer logo "não, não". Em outras, digo sim. Porque estamos falando de uma mistura estranha. Escrever é muito normal para mim. E é também inacreditavelmente desafiador, muito forte e ao mesmo tempo aterrorizante de diferentes maneiras. Mas é o que eu mais gosto de fazer. Na verdade, com O ministério de casos especiais aconteceu o oposto do que vinha ocorrendo com meus contos, nos anos anteriores: eu fiquei completamente obcecado por esse romance. Ele me tirou tudo o que eu tinha, e eu passei a viver dentro do livro. Sim, é desafiador. Mas eu não vejo a hora de ser absorvido por um outro livro novamente. E de novamente perder tudo de mim dentro dele, por um longo tempo.
Você nasceu e vive em Nova York, e morou alguns anos em Jerusalém. Por que seu primeiro romance se passa na Argentina?
– Acho que essa resposta só foi ficando clara para mim com o tempo. Não que no início eu não tivesse vestígios dela, mas acontece que o seu sentido vai mudando. Eu vejo agora, com um certo distanciamento, o quanto esse romance é uma metáfora sobre o tempo que estive em Jerusalém. Eu amo as cidades, sou um amante delas. Se um dia eu tivesse que dormir ao léu na Times Square, em Manhattan, acharia ótimo.
E essa metáfora de Jerusalém, do que trata?
– Eu sou um nova-iorquino e me mudei para Jerusalém. São cidades muito diferentes, mas são cidades centrais, intensas. Os países vivem ao seu redor. Ou as evitam. Quando fui para Jerusalém, esperava fazer a paz, colaborar com esse lindo novo mundo de paz no Oriente Médio. Acabei observando as coisas ficarem negras. E eu acho que várias pessoas sabem o que é isso, quando uma cidade se transforma. Mas uma cidade pode continuar amada pelos seus moradores. E eu acho que Buenos Aires é assim, os portenhos são tão dedicados e obcecados por aquela cidade, leais a ela para sempre. Acredito que essa cidade, num sentido histórico, continua sempre se transformando, virando os seus próprios moradores. E eu queria explorar isso: como decisões governamentais influenciam a vida das pessoas, cidades complicadas, família, identidade. Buenos Aires se tornou o lugar perfeito para que a história com todos esses elementos acontecesse, ainda mais naquela época.
Você então chegou muito perto da intimidade argentina.
– Sim, quanto mais tempo eu passava em Buenos Aires, mais eu me tornava obcecado por ela. Pode ter começado como uma metáfora, mas agora eu não poderia ser mais interessado por ela do que já sou. No início ela não era tão íntima do meu coração, mas agora eu me sinto realmente muito próximo. Inclusive da sua história de uma ditadura sangrenta. Como um garoto judeu, o holocausto era ensinado para mim da seguinte forma: "essa é sua memória sobre a história". E às vezes eu de fato me pego pensando sobre o genocídio. E o livro é sobre isso, sobre como nós herdamos nossas narrativas. Nossa família nos dá uma história, nosso país nos dá uma história. Se temos uma religião, ela também nos dá uma história, tudo nos é transmitido. Nesses anos todos obcecado pela época da ditadura na Argentina, ela se tornou muito próxima de mim. É como o Brasil, aquele tempo na América do Sul é uma época terrível, assassina. Eu posso ter começado a escrever sobre a Argentina por um motivo, mas acabei terminando por outro.
Uma curiosidade: você aprecia a literatura argentina?
– Sim, adoro. E isso é um perigo. Enfrento vários desafios quando escrevo um livro. Por exemplo, há uma espécie de sirene que toca quando algo pode ser muito óbvio. Como adoro a literatura da América do Sul, percebi que eu poderia cometer muitos erros óbvios. Quando comecei a escrever, tive que tomar a seguinte decisão: iria escrever sobre a minha Buenos Aires, a minha história, com a minha voz e o que mais esse livro demandasse. Pois eu amo (Julio) Cortázar, (Jorge Luis) Borges, (Gabriel García) Márquez, Jorge Amado. Existem tantos bons escritores na América do Sul que eu precisava ficar me lembrando sempre: ninguém nesse livro terá asas, não haverá anjos, nem papagaios mágicos. Este é o oposto do realismo fantástico do Cortázar. Na minha Buenos Aires, não haverá magia. Eu faço o meu trabalho.
É verdade que você é um workaholic?
– Sim, isso é absolutamente verdade. Sempre converso com meus amigos sobre o quanto eu trabalho. Mas, apesar disso, eles ainda me reconhecem (risos). No metrô ou no restaurante, sempre tem alguém dizendo "olá, Nathan". Então meus amigos acham que, para um workaholic, eu conheço bastante gente. No fim das contas, até que eu saio um bocado e, para um escritor, sou bastante sociável. Alguns de meus colegas não precisam das pessoas. Mas eu não, eu realmente preciso delas, dos meus amigos, preciso sair de casa. No entanto, quando estava escrevendo esse livro, me dedicava a ele literalmente sete dias por semana, dia e noite. Quando começo um livro, o trabalho toma conta de tudo.
Você já esteve no Brasil?
– Bem, seu governo gentilmente pagou minha ida a Paraty. Quando eu preenchi o formulário da viagem, quase marquei não na pergunta sobre se eu já havia estado no país. Mas me lembrei de que, uma certa vez, tive de fazer uma conexão no Rio e passei uma noite na cidade.
O que você espera da festa literária em Paraty?
– Eu sei muito pouco sobre ela. Só ouvi dizer que Paraty é extremamente bonita e que tem uma importância histórica. Todos os escritores que conheço que já foram ao balneário disseram que é um lugar fantástico. Estou muito animado.
Você conhece o trabalho dos escritores Martín Kohan e Vitor Ramil, com quem vai debater na Flip?
– Vou ser sincero: ainda não fiz meu dever de casa. Mas vou tentar, até lá.
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