O Globo, Caderno Prosa e Verso, página 5, em 26/07/2008.
Fotobiografia contextualiza e ajuda a entender a personalidade da autora
Muitas dessas peças que ajudam a ver e a compreender
Clarice por vários ângulos acabam de ser colocadas a público com o lançamento do livro “Clarice — Fotobiografia”, uma parceria da Edusp com a Imprensa Oficial de São Paulo.
É uma obra de tirar o fôlego. Ao longo de suas quase 700 páginas, o livro organizado pela professora de literatura da USP Nádia Battella Gotlib — uma das maiores especialistas
Por exemplo: ao falar dos primeiros momentos de vida de Clarice na Ucrânia, Nádia Gotlib vai buscar as fotos referentes à Revolução Russa, que engolfou também o país natal da escritora, para traçar um painel de época que torne mais compreensível — visual e textualmente — a história que se está contando.
Afinal, Clarice foi uma mulher de muitas paragens, de muitas viagens. E é isso que sua alentada fotobiografia mostra com extremo apuro.
Nascida em Tchechelnik, na Ucrânia, Clarice chegou ao Brasil com dois anos de idade, acompanhada dos pais e de suas duas irmãs, fugindo da guerra civil que estava destroçando seu país, um desdobramento da Revolução de Outubro de 1917. Sua família passou por Maceió e Recife, até se fixar no Rio de Janeiro.
Foi lá que Clarice conheceu e se casou com o diplomata Maury Gurgel Valente, com quem viveu entre 1943 e 1959. Nesse período, Clarice o acompanhou em várias missões — algumas ainda durante a Segunda Guerra Mundial — em cidades como Belém do Pará, Berna (Suíça), Nápoles, na Itália e Torquay, na Inglaterra.
Por todos esses lugares Clarice se deixou fotografar — e muitos desses registros estão agora no livro da Edusp, como aquele em que ela aparece como enfermeira voluntária em Nápoles, quando as bombas da guerra ainda espocavam pela Europa.
Talvez este seja uma dos principais atributos dessa “Fotobiografia”: ilustrar de forma clara o percurso de vida de uma mulher em busca de seu lugar no mundo.
Mais de uma vez, Clarice Lispector deu a entender em seus textos e em entrevistas que “não pertencia” a lugar algum.
Seu mundo era outro, sua linguagem, seus sentidos. O mundo podia até ser uma maçã no escuro, que ela tateava e procurava compreender. É essa relação muito peculiar com o mundo, esse correr riscos com a palavra e com a vida que faz da literatura de Clarice algo único, algo que já em seu primeiro romance — “Perto do coração selvagem” — chamava a atenção de críticos como Antonio Candido e Lúcio Cardoso. A escrita fragmentada de Clarice nesse primeiro trabalho, que vai se apresentar em outros, são as “pulsações” que reinventam seu lugar no tempo e no espaço, criando uma escrita que perturba, ao mesmo tempo em que atrai. E ela não era uma autora de fazer concessões. “Eu escrevo para nada e para ninguém.
Se alguém me ler será por conta própria e auto-risco”, escreveu ela, certa vez. Ela sabia do risco que era lê-la. Todos sabiam. E continuavam a ler, como se fosse um mantra, como se cada página virada fosse uma mandala arquitetada.
Essas peculiaridades da personalidade e da obra de Clarice transparecem por todas as 656 páginas de sua “Fotobiografia”.
São originais fora de ordem, são esboços de textos que um dia virariam livros, são cartas de vários tons e semitons, idéias anotadas em folhas de cheque. É Clarice de corpo inteiro. Mesmo quando ela se ocupa de preocupações pueris, como pedir, em uma carta, que o escritor mineiro Murilo Rubião parasse de publicar fotos dela quando estava “temporariamente gorda”.
“Mando-lhe fotografias (recentíssimas, do final do mês de dezembro) e em troca você me manda todos os negativos que você tem. Certo?”, escreveu ela em 9 de janeiro de 1974. “Afinal, o fato de escrever não me faz perder um pouco da vaidade, não sou homem.” O livro que Nádia Gotlib organizou é um registro importantíssimo.
E não é pelas centenas de fotos que o compõem. É, podese dizer, pelo “conjunto da obra”. As imagens detalhadamente escolhidas, o apuro técnico e editorial, e um alentado apêndice, com comentários sobre as imagens e uma cronologia das mais completas. É Clarice de alma e face fotografadas.
Imagens e dados que proporciona, como diz Nádia Gotlib, “encontros mágicos” para o leitor/ espectador dessa “Fotobiografia”.
Em se tratando de Clarice Lispector, não poderia mesmo ser diferente.
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