O Globo, Segundo Caderno, página 2, em 03/11/2008.
Um tabu francês revisto em romance
Em 'A chave de Sarah', a escritora Tatiana de Rosnay lembra do crime de Vel' d'Hiv, contra os judeus na 2ª Guerra
André Miranda
Por décadas, uma história da Segunda Guerra Mundial foi mantida escondida de jovens gerações de franceses: a Batida de Vel’ d’Hiv, quando 4.500 policiais franceses, obedecendo a ordens nazistas, detiveram por oito dias 13.152 judeus no Velódromo de Inverno, a fim de deportá-los para campos de extermínio. “Havia um tabu cercando o fato”, conta a escritora e jornalista francesa Tatiana de Rosnay.
Tatiana é a autora de “A chave de Sarah” (editora Objetiva), um romance que se baseia no crime no Vélodrome d’Hiver (Velódromo de Inverno), ocorrido em julho de 1942, durante a ocupação nazista na França.
Depois de o governo francês passar anos se recusando a pedir desculpas pelo ocorrido, apenas em 1995 o então presidente, Jacques Chirac, veio a público assumir a responsabilidade do Estado pelas vítimas.
Em “A chave de Sarah”, a história é contada a partir da investigação da personagem Julia Jarmond, uma jornalista americana que vive na França e que é designada para cobrir o 60oaniversário de Vel’ d’Hiv. Durante a apuração, ela descobre que o apartamento para o qual planeja se mudar pertenceu a uma família judia, cuja única sobrevivente seria Sarah: uma menina que, antes de ser arrancada de casa pela polícia, tranca o irmão num armário, a fim de protegê-lo.
Em entrevista ao GLOBO, Tatiana explica o que a levou a desenvolver essa história, e como “A chave de Sarah” se tornou um best-seller, tendo seus direitos vendidos para 22 países.
O GLOBO: Por que escrever um livro usando o Vel’ d’Hiv como ponto de partida? É difícil para a França aceitar o que aconteceu?
TATIANA DE ROSNAY: Como muitos franceses nascidos nos anos 1960, eu não aprendi sobre o Vel’ d’Hiv na escola. Não sabia muito sobre o tema até o famoso discurso do Chirac em 1995, que revelou como a polícia francesa colaborou com os nazistas e em qual magnitude.
Eu soube que gostaria de escrever sobre o assunto quando percebi que ainda havia um tabu cercando o episódio na França, embora o Vel’ d’Hiv seja ensinado nas escolas hoje e talvez seja menos encoberto pelo silêncio.
Quem seria Sarah hoje? Que tipo de pessoa poderia ter toda aquela energia que a personagem mostra no livro?
TATIANA: O acontecimento que mudou a vida de Sarah ocorreu em julho de 1942. Eu só posso esperar que, hoje, ela poderia encontrar consolo em sua família e numa sociedade que não quer mais esconder o passado. Para uma criança, ela tinha uma tremenda energia, mesmo sem compreender o que estava acontecendo e como outras pessoas poderiam ser tão cruéis com ela e com sua família. E foi essa energia que a salvou.
Como você fez a pesquisa para o livro?
TATIANA: Li tudo que pude sobre o episódio: livros, artigos, cartas. Fui para Beaune
Conheci sobreviventes de Vel’ d’Hiv, e eles me proporcionaram momentos inesquecíveis.
A chave de Sarah” não é exatamente um romance histórico, mas trata de acontecimentos históricos. Você acha, então, que um escritor deve ser cauteloso ao lidar com elementos históricos?
TATIANA: Eu sabia que não poderia tomar certas liberdades sobre fatos e datas passadas em 1942. Então, sim, eu fui cautelosa. O livro é um romance, mas os eventos descritos em 1942 são baseados na minha pesquisa.
“A chave de Sarah” conta com um site de promoção muito bem feito, e você também usa sua página no MySpace para divulgar seu trabalho. Você acha que a internet pode ser uma aliada para um escritor? Será que os autores de sua geração, que sempre tiveram um certo preconceito contra a internet, estão enxergando os benefícios da rede?
TATIANA: A internet é uma enorme aliada para o meu trabalho e é, também, uma ferramenta preciosa. Eu, pessoalmente, nunca tive preconceito algum contra a internet. Acredito que você esteja falando de outra geração (Tatiana manda uma carinha sorrindo, um símbolo tipicamente usado por internautas). Eu uso o Facebook, o MySpace e tenho três blogs para me comunicar com os leitores ao redor do mundo, já que meu livro foi publicado em 22 países.
Você escreveu seus livros anteriores em francês, mas este foi escrito
TATIANA:
Meu pai é francês, minha mãe é britânica, e eu cresci na França, nos Estados Unidos e na Inglaterra, aprendendo ambas as línguas ao mesmo tempo. Então escrevi “A chave de Sarah” em inglês porque senti que escrever sobre um tema tão sensível aos franceses seria, de alguma forma, mais fácil para mim se eu usasse meu lado “inglês”. Porque, assim, eu manteria alguma distância.
Além disso, como a minha heroína, Julia Jarmond, é americana, não era possível visualiza-la “falando” em francês.
E qual será seu próximo passo? Depois de um livro tão bem-sucedido, é difícil seguir escrevendo?
TATIANA: Acabei de terminar um novo romance. “Boomerang” será publicado em 2009, e ele também foi escrito em inglês.
É a história de um homem moderno, confrontado com uma verdade obscura de sua família, e que vai encontrar o amor de forma inesperada. É um livro sobre amor (meu primeiro assim), morte, paternidade, crianças e segredos.
O que é preciso para escrever uma história que toque tanto o coração das pessoas, em tantas línguas diferentes?
TATIANA: Quando escrevi “A chave de Sarah”, eu não tinha idéia de que tudo isso iria acontecer. Os e-mails e as cartas que eu recebo todos os dias são incríveis, muito tocantes.
Levo algum tempo para responder a todas pessoalmente, mas faço isso. Acho que meus leitores ficam mexidos com a história de Sarah, pela luta de Julia, pelo horror que senti dentro de mim quando descrevi os terríveis eventos de 1942.
Como o jornalismo pode ajudar a desenvolver habilidades literárias? A você, em que ele ajudou?
TATIANA: Eu já era escritora antes de me tornar jornalista.
Mas sinto que a pesquisa detalhada que fiz para completar o livro foi um combustível para a construção da história.
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