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Rio de Janeiro, RJ, Brazil
Cláudia Andréa Prata Ferreira é Professora Titular de Literaturas Hebraica e Judaica e Cultura Judaica - do Setor de Língua e Literatura Hebraicas do Departamento de Letras Orientais e Eslavas da Faculdade de Letras da UFRJ.

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sábado, 27 de dezembro de 2008

Chanuká: Que a luz da liberdade a todos ilumine

O Globo, Segundo Caderno, Arnaldo Bloch, página 10, em 27/12/2008.


Chanuká

Que a luz da liberdade a todos ilumine


Transcorriam pouco menos de dois séculos A.C quando os judeus, liderados por Yehudá Hamacabi (Judá, o Macabeu), resistiram à tentativa dos selêucidas de, através da opressão, extinguir suas práticas religiosas e tradições e assimilá-los à cultura helenística. Ao liberar Jerusalém do jugo grego e retomar o Grande Templo, os macabeus encontraram-no desprovido da Menorá (candelabro) de ouro, tendo que substituíla por uma de ferro. Além disso, o óleo de oliva para acender a Menorá estava impuro, e não havia tempo de produzir uma nova essência abençoada pelo sacerdote. Até que, pouco antes de escurecer, Yehuda encontrou, num vértice, um último pote de óleo ilibado. Naquela primeira noite o templo se iluminou. O povo, contudo, dormiu angustiado: como seria na segunda noite, e nas conseguintes? Ao primeiro raiar, porém, a nuvem se dissipou: inexplicavelmente, a quantidade de óleo no candelabro pouco se alterara. Mesmo à luz do dia, a chama resistia! Na segunda noite o fenômeno se repetiu e assim conseqüentemente, de modo que aquele potinho de azeite foi suficiente para encher o templo (e a alma do povo) de luz, por oito dias: o período exato para se colher e produzir o novo óleo sacro.


Desde então, a tradição judaica é de, nesta época (que sempre coincide, com poucas variações, com a luz natalina) acender, durante 8 dias, uma Chanukiá, candelabro de 9 bocas (a “chama guia”, adicional, simboliza a essência duradoura), sempre próxima a janelas, ou mesmo na rua, importando que a luz se irradie para a comunidade, comunidade no sentido maior, de se pertencer à grande corrente multicultural, sem perda da própria identidade.


É, sem dúvida, a festa mais alegre e democrática do povo de Abraão. E não à toa: a liberdade de expressar idéias e ideais, laicos ou sacros, crentes, agnósticos ou ateus, de culto, de mito, de rito, de usos e tradições, tal liberdade é cara a todas as culturas respeitadas em seu direito de existir.


A luz de Chanuká pode e deve ser compartilhada por toda a cidade, onde quer que se esteja: para quem é de Geová, para quem é de Jesus, para quem é do Buda, para quem é de Alá ou esteja com Iemanjá, para os que vêem deuses nos ventos e nas águas, para os índios na aliança com suas entidades da floresta, seus deuses e luzes ancestrais, e também para quem não crê em nada, só no ser, ou nem no ser, mas na inevitabilidade do ser iníquo — para todos esses que somos a luz há de brilhar os necessários dias para que se renove a essência, óleo de nossa iluminação interior.


A luz de Chanuká nos faz pensar mesmo em essências, na própria essência da luz, e nas várias acepções em que a palavra, ou sua idéia, é empregada em nossos dias. Nem tudo que reluz é ouro, se diz, mas a prática é de um mundo em que a falsa luz se expande amiúde num grande espetáculo de imposturas, luzes que se adoram a granel, deuses que se fazem célebres da noite para o dia e se multiplicam em milagres de fama e infâmia. A chama desta luz, de um óleo impuro, é a vaidade.


No Pirkei Avot (a “Ética dos Pais”), importante tratado talmúdico, há uma passagem em que se legisla sobre o mau uso da Torá, o pentateuco, base do que depois constituiria o Velho Testamento. Passagem útil tanto para quem segue os seus mandamentos quanto para o ateu, que pode ater-se (inevitável trocadilho!) ao simbolismo. A Torá, neste caso, representando o saber, a idéia, a consciência, ou algum senso ético perene, essencial: “Rabi Tzadók dizia: não a transformes [a Torá] em uma coroa para te auto-engrandecer, nem em um machado para cortar. E assim também Hilel costumava dizer: Aquele que explora a coroa [da Torá para seus próprios interesses] perecerá.


De fato, aprendeste disto: Quem obtém benefício pessoal das palavras da Torá, arrebata sua vida do mundo.” Para Salomão, nas belíssimas e líricas reflexões de Eclesiastes, essa vaidade está em tudo, na própria essência, não só no ímpeto do tolo, ou do louco, mas nos fazeres e arroubos do sábio e do são, a quem deveria ser imputada toda a virtude. Esta consciência extrema e amarga a que chega o jamais tão sábio Salomão (mesmo sob o risco de, fielmente a seu raciocínio, ser, ela mesma [consciência], fruto de vaidade) é uma consciência iluminada, de um espírito humano que dá o passo decisivo rumo a algum tipo de evolução, seja ela terrena ou divina, conforme se creia ou não.


Insisto em sempre contemplar o crente e o incréu nessas linhas intuitivas: por vezes, não crer é o mesmo que crer quando se afirma a não-existência como uma certeza absoluta, ou seja, fé. Mais honesto, a meu ver, ao cético, é manter-se no terreno agnóstico, para legitimar a herança das Luzes e não resvalar na vã intolerância, que sempre resvala na violência do racional-obscurantismo. O mesmo vale para o que tem fé na existência divina: demonizar o incréu, ou eleger-se a si mesmo espécie de santo, varrendo para escanteio sua própria vaidade, vai contra os princípios de liberdade que estão no seio de toda religião, ainda que muitas vezes escamoteados pela prática: o próprio ato de fé é um ato de liberdade, a mesma liberdade que permite ao ser crer, não crer, errar, acertar, viver conforme seu pensamento, pessoal, intransferível, e, ao mesmo tempo, corrente de luz universal. O que é o livre-arbítrio senão isso? Felizes Chanuká, Natal e Ano Novo, e que Iemanjá nos ilumine.


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