Judeus e muçulmanos, expulsos da Península Ibérica no século XV, deixaram um rico legado arquitetônico e cultural. A influência também está marcada no DNA: um em cada três portugueses e espanhóis descende de judeus
Revista Veja – Edição 2092 – 24/12/2008.
A curiosidade em relação aos antepassados é um componente da natureza humana. Para reconstruir a história, conta-se tradicionalmente com documentos, testemunhos e artefatos arqueológicos. Agora, uma nova ferramenta está à disposição dos estudiosos: a pesquisa genética. Ela permitiu comprovar que os ameríndios são originários da região central da Sibéria e revelou que nada menos que 12 milhões de pessoas na Eurásia são descendentes diretos do conquistador mongol Gêngis Khan. Um estudo genético divulgado neste mês traz outra revelação inesperada: um terço da população de Espanha e Portugal – países com uma história de fervor católico e intolerância religiosa – tem entre seus ancestrais judeus ou mouros.
Mais de 99% do genoma humano é idêntico em todas as pessoas. Mas cada grupo populacional possui um conjunto de pequenas mutações identificáveis, chamadas marcadores. Estes marcadores podem ser rastreados por meio da análise do cromossomo Y, que passa quase intacto de pai para filho. Fizeram parte do estudo 1 140 portugueses e espanhóis cujos avôs também eram nascidos na Península Ibérica – o que indicava que suas famílias estavam ali desde pelo menos 1900. Esse material foi comparado com os marcadores de muçulmanos do norte da África e de judeus sefarditas de várias nações para medir a sua presença na população ibérica atual. Sefarditas são os descendentes dos judeus expulsos da Espanha e de Portugal no século XV. A conclusão: 20% dos habitantes desses dois países possuem ascendência judaica e 11% têm genes árabes e berberes.
Os muçulmanos invadiram a Península Ibérica em 711 e dominaram boa parte dela por sete séculos. A presença judaica remonta à primeira grande diáspora depois da tomada de Jerusalém pelas legiões romanas, no ano 70. Os judeus consideram como uma era de ouro justamente o início do domínio mouro. Foi um período de florescimento cultural, com destaque para a medicina e a filosofia, e de relativa tolerância religiosa. Apesar das disputas dinásticas e das rixas entre tribos berberes, em raras ocasiões os judeus e os cristãos foram massacrados ou forçados à conversão. Em parte por razões pragmáticas, dizem os historiadores, visto que os "infiéis" pagavam altos impostos.
A convivência foi sepultada em 1492, quando os reis Isabel de Castela e Fernando de Aragão tomaram Granada, o último reduto mouro na península. No mesmo ano, os judeus foram forçados a se converter ou deixar a Espanha. Na época, havia cerca de 400 000 deles no país. Desses, 120 000 fugiram para Portugal. Quatro anos depois, a intolerância religiosa cruzou a fronteira. Para cederem a mão de sua filha Isabel ao monarca português dom Manuel I, os reis da Espanha exigiram a expulsão dos judeus que recusassem a conversão. Até o marquês de Pombal destruir os registros, no século XVIII, os convertidos, chamados de cristãos-novos, permaneceram cidadãos de segunda classe em Portugal e também no Brasil. Percebe-se agora que as conversões ao cristianismo durante a Inquisição parecem ter ocorrido em maior quantidade do que se pensava.
"O que mais nos surpreendeu foi o fato de a influência judaica ser tão maior que a muçulmana, mesmo com séculos de domínio mouro", disse a VEJA o historiador português Jorge Martins, autor do livro Portugal e os Judeus. "Até hoje não há compreensão do real tamanho da contribuição judaica para nossa identidade nacional." Atualmente, essas confissões religiosas compõem menos de 2% da população da península e nem sempre são vistas com bons olhos. No último censo realizado em Portugal, apenas 1 773 pessoas se declararam de religião judaica. Segundo uma pesquisa recente, metade dos espanhóis tem uma visão negativa dos judeus, um dos índices mais altos de toda a Europa. À luz do estudo genético, pode-se dizer que se trata de uma visão distorcida da própria imagem no espelho.
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