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Rio de Janeiro, RJ, Brazil
Cláudia Andréa Prata Ferreira é Professora Titular de Literaturas Hebraica e Judaica e Cultura Judaica - do Setor de Língua e Literatura Hebraicas do Departamento de Letras Orientais e Eslavas da Faculdade de Letras da UFRJ.

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sábado, 23 de agosto de 2008

A dádiva de Imre Kertész

O Globo, Caderno Prosa e Verso, página 4, em 23/08/2008.

Refletindo sobre a existência, ganhador do Nobel afirma opção pela vida

Tatiana Salem Levy


Em “Eu, um outro”, Imre Kertész, ganhador do Nobel de Literatura de 2002, compartilha com o leitor reflexões sobre a identidade, a morte, a escrita e a existência. De 1991 a 1995, entre palestras e passeios por países como Áustria, Hungria, Israel e Alemanha, o escritor húngaro, quase sempre acompanhado da mulher (que ele chama apenas de A.), faz anotações sobre os fatos à sua volta, mas, como ele mesmo diz, essas notas não se assemelham em nada aos fatos.Em vez da coleção de imagens e anedotas do turista habitual, trata-se aqui de uma viagem em busca de uma identidade. Mas uma identidade que se sabe estilhaçada, um “eu” sempre outro. Embora levante de vez em quando a questão “quem sou eu?”, Kertész não está exatamente preocupado em respondê-la, pois sabe que não existe resposta possível. O que lhe interessa, isso sim, é construir caminhos por onde esse “eu” possa se fazer e se desfazer. Diz já não estar mais à procura de sua pátria, nem de sua identidade.

Afirma-se, acima de tudo, como escritor: “tenho uma única identidade, a identidade do escrever”. Ao optar pela literatura, Kertész opta também pela alteridade, pela diferença, libertando-se do aprisionamento de certos estigmas em que ele próprio, pela sua condição de judeu húngaro, se encontra.

Autor foi deportado para Auschwitz aos 15 anos
Em 1944, aos 15 anos, Kertész foi deportado para Auschwitz , de pois para Buchenwald e Zeitz. Conheceu os horrores dos campos de concentração nazistas e sobreviveu a eles. E, claro, como intelectual e escritor, questionouse imensamente, após a guerra, sobre sua identidade: judeu? Húngaro? Judeu e húngaro, talvez, se isso fosse possível. Não é sem lamento, portanto, que constata que sua língua materna, “essa língua estrangeira”, o ajuda a entender seus próprios assassinos. Kertész morou em vários lugares, está sempre viajando, como atesta “Eu, um outro” (em ótima tradução de Sandra Nagy), e não consegue fazer seu ninho em lugar nenhum. Assumese como um eterno exilado, como um estrangeiro em qualquer lugar onde esteja, na Hungria ou em Israel.

A idéia do escritor como um estrangeiro dentro da própria língua já foi muito explorada e discutida. Mesmo correndo o risco da repetição, porém, é inevitável voltar a esta analogia, pois a situação de Imre Kertész é justamente a de um escritor que não tem pátria, nem em seu próprio país. Um escritor que escreve numa língua ao mesmo tempo materna e estrangeira. Não é de se espantar, portanto, que, ao falar de suas inúmeras viagens, ele afirme viver como um exilado: “Nesse único aspecto vivo corretamente: sou um exilado”. Sobrevivente de Auschwitz, judeu numa Hungria antisemita e, durante anos, stalinista, escritor e viajante, Kertész vive o exílio tanto física quanto simbolicamente.

Quase todos os seus textos, como a trilogia “Sem destino”, “Fiasco” e “Kadish”, tratam do Holocausto, seja de forma ficcional ou reflexiva. Mas seria um erro pensar que Kertész escreve porque viveu a experiência traumática dos campos. A lógica é outra: ele escreve e, como escritor que passou por essa experiência particular, não poderia deixar de abordá-la. Estaria mentindo para si mesmo se pretendesse esquecê-la, sem mencioná-la. No entanto, a grandeza de sua literatura reside no fato de que ela ultrapassa os limites do estritamente pessoal e transforma o Holocausto num assunto referente a toda a Humanidade, não apenas ao povo judeu ou àqueles que sofreram tal atrocidade.

O escritor é levado, pela paixão de seu ofício, “a descrever a condição humana” e, por esse motivo, precisa “abrir seu coração para a total miséria que reside nessa condição”. Isso não significa uma vida ( ou uma obra) feita de lamentos. Ao contrário: a felicidade, afinal, só é possível para quem encara o mundo sem esquivar-se, mesmo quando a realidade alcança o insuportável, como no caso dos campos de concentração.

Em “Eu, um outro”, Kertész demonstra uma lucidez gritante, e, sem dúvida, é essa lucidez que o torna feliz. Como ele nos lembra, felicidade não é esse sentimento pasteurizado que se vende por aí quase como obrigação, mas algo que se obtém quando se está disposto a fazer parte do mundo, aberto a tudo o que ele tem de belo e triste. É por isso que falar dos horrores do Holocausto torna-se inevitável para um escritor como Kertész. Afinal, como ressalta Nietzsche (aliás, um dos filósofos traduzidos por ele para o húngaro), é preciso lembrar para esquecer.

Leveza e doçura, mesmo com os temas mais duros
No entanto, lucidez não é, aqui, sinônimo de compreensão. “Não entendemos o mundo porque não é essa a nossa tarefa na terra”, diz o narrador de “Eu, um outro”. Em vez de buscar uma explicação que encapsule o sentido de nossa existência, Kertész estende a mão ao leitor e convida-o para um passeio por seus pensamentos e sensações. Há algo de leve e doce em suas palavras, mesmo quando tratam de temas duros, desde barbáries coletivas a dramas individuais, como a doença da esposa. Há também, e acima de tudo, uma generosidade rara. Nada é mais generoso do que enfrentar as intempéries e, sem perdera esperança, continuar acreditando na Humanidade. Nesse sentido, a opção de Kertész pela vida e pela escrita é um verdadeiro dom, a dádiva de um “eu” aos outros.

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