O Globo, Suplemento Prosa e Verso, página 05, em 21/06/2008.
Textos de Rawet mostram a vertigem de um escritor que não temia a loucura
Heliete Vaitsman
O trauma do estranhamento
(não só da terra natal, mas de si mesmo e da família) não desgruda desse judeu nascido na Polônia, mas sentimentalmente carioca, suburbano criado entre Ramos e Olaria, insone freqüentador das madrugadas do Largo do Machado. Na Europa oriental de onde ele chegou em 1936, aos sete anos, o judeu era o estranho por excelência, mais ameaçador que o inimigo. O escritor escapou do Holocausto ao imigrar, mas não escapou do sentimento de exclusão, constituindose em torno dele como sujeito “maldito” muito antes de a transgressão virar moda.
Incompreendido tanto no mundo de origem, a comunidade judaica provinciana e conservadora, quanto no mundo de destino, machista e preconceituoso, Rawet viveu e escreveu de modo extremado. Sua dor diante da miséria humana não admite ilusões. A Klimontov ancestral que aparece em “Contos do imigrante”, seu livro de estréia, de 1956, já embute os males do mundo. “Ah, as neves da minha infância, ah, as doçuras das varadas que levei porque chutei uma bola na rua.
Foram contar ao velho barbudo (já então havia delatores), e o homem espumou na sala do prédio da sinagoga...” recorda, no ensaio “Devaneios de um solitário aprendiz da ironia”, em que fala da teoria da consciência unificada no mesmo parágrafo em que lembra a humilhação, a euforia e o gozo de saberse homossexual.
O escritor formou-se em engenharia, na tradição dos filhos de imigrantes em busca de ascensão. Brilhante, integrou-se à equipe que construiu Brasília e foi nada menos que o principal calculista do Congresso Nacional, tendo participado de projetos na França e
Rawet não procurou alívio na religião, na psicanálise, ou na ciência. Apreciador de Lima Barreto, Drummond e Antonio Carlos Villaça, que elogia no livro, preferiu escrever sem parar: contos, novelas, artigos para jornais e revistas, poesia, teatro, ensaios e crônicas. No prefácio dos “Ensaios”, organizados cronologicamente por Rosana Kohl Bines e José Leonardo Tonus, estes advertem para a vertigem produzida por um escritor que proclama não temer a loucura e que “à síntese e à lógica privilegia o desconexo, o paradoxo, o não linear”, tornando-se cada vez mais contraditório e até escatológico (o primeiro ensaio, de 1970, é “Homossexualismo: sexualidade e valor”; o último, de 1984, é “Filosofia: nem só de cão vive um lobo”).
À maneira de um Bruno Schulz dilacerado, descrê da possibilidade de salvação num mundo sem bondade. Deus não existia, Freud era uma fraude, escreveu, às vésperas de isolarse em Brasília, onde morreu em
Rawet jamais se aquietou no espaço do não pertencimento. Desajeitado, como se descreve, pensou que poderia organizar um sistema de mundo e talvez se salvar nele. No final, seu grito sem ressonâncias imediatas produziu cansaço, ressentimento e morte em estado de solidão.
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