O Globo, Prosa e Verso, página 6, em 24/01/2009.
Nostalgia e pesadelo
Romance conta história de família palestina dilacerada pelos conflitos no Oriente Médio
Rachel Bertol
Na introdução de seu romance, “A cicatriz de David”, enviado esta semana pela editora Record às livrarias, a escritora Susan Abulhawa conta que o crítico literário Edward Said, principal voz da causa palestina nos EUA, morto em 2003, teve grande influência na elaboração do livro. “Certa vez ele lamentou a falta de uma narrativa literária palestina, e eu incorporei seu desapontamento à minha sacola de decisões”, escreveu Susan, filha de refugiados palestinos da Guerra dos Seis Dias, em 1967.
Moradora da Pensilvânia, nos EUA, fundadora da ONG Playgrounds for Palestina — dedicada a criar espaços de brincadeiras para crianças da região —, Susan, apesar da formação na área biomédica, resolveu se lançar na ficção depois de visitar, em 2002, o campo de refugiados de Jenin, naquele ano alvo de severos ataques por parte das forças israelenses, na sua caça a terroristas.
A partir de suas memórias — como nas passagens da protagonista pelo orfanato em Jerusalém — e das histórias de refugiados que conheceu, Susan conta o drama de uma família dilacerada pelos conflitos na região. Os personagens, afirmou em entrevista ao GLOBO por telefone dos EUA, são todos ficcionais. Em 1948, veem-se obrigados a deixar suas terras e rumam para Jenin. Nesse caminho, o segundo filho de Hasan e Dália, Ismael, ainda bebê, é roubado por um oficial israelense cuja mulher não podia engravidar devido à violência sofrida num campo de concentração nazista. O bebê é renomeado David e, ao crescer, vira um soldado judeu que luta contra o irmão.
A história é narrada por Amal, a caçula dos três, que nasce no campo de Jenin. Em 1967, aos 12 anos, perde o pai na guerra e sua mãe, que nunca mais fora a mesma desde o sequestro do bebê, enlouquece.
O irmão mais velho resolve se juntar ao Fatah de Yasser Arafat.
Susan conta como era o dia-a-dia no campo de refugiados, as angústias, os pesadelos, a nostalgia dos que lá estavam confinados.
Nos EUA, o livro da militante, que ganhou o National Book Awards na categoria ficção histórica, em 2007, foi tido como controverso. Por um lado, permite que se entenda — através de uma narrativa que emociona — o sentimento de revolta dos palestinos; por outro, Susan, que não é historiadora, mexe com questões históricas polêmicas, que provocam paixões e são revistas a cada dia no meio acadêmico. Por conta disso, o livro recebeu algumas críticas amargas (embora também tenha sido elogiado), provocando a reação de judeus em Nova York, quando uma grande livraria na cidade abriu espaço para que ela lesse trechos e desse autógrafos.
O mote — o seqüestro do bebê árabe criado por judeus — teve como inspiração a novela “Return to Haifa”, do conhecido e respeitado autor palestino Ghassan Kanafani (1936-1972), que morreu junto com uma sobrinha em atentado perpetrado pelo Mossad, em Beirute. O texto chegou a ser adaptado para o cinema nos anos 1980. Kanafani acreditava na força da literatura como aliada na causa política e cunhou a expressão “poesia de resistência”, marca associada à produção de diferentes autores palestinos ou de origem palestina.
— A literatura tem o poder de ensinar e humanizar. Há muitos livros sobre a Palestina, livros de História, sobre as lutas, mas só um grupo reduzido de pessoas lê livros acadêmicos. A ficção tem um público completamente diferente e esta foi parte da razão de eu querer escrever.
Com a literatura, pode-se entender a História do ponto de vista humano: quem aquelas pessoas amam, que livros leem, que lutas travam — disse Susan.
“Muitas outras histórias sendo escritas por palestinos”
Nos EUA, sua prosa busca espaço entre as brechas do que chama de “grande lobby judaico”.
— Hoje em dia, há muitas outras histórias sendo escritas por palestinos que vivem no Ocidente, na Ásia ou em outras partes do mundo. Se não descrevem diretamente o conflito no Oriente Médio, são importantes porque nos humanizam. O fato é que em muitas partes do Ocidente e sobretudo nos EUA , as pessoas n ã o olham para nós (palestinos) como humanos — acredita a autora, que preserva um otimismo prudente quanto a Barack Obama.
— Contra todas as evidências em contrário, tento manter a esperança de que será um pouco diferente com Obama. É claro, se olharmos as pessoas que indicou para o governo, é difícil pensar que será diferente. A influência de Israel nos EUA é muito grande, tornou-se uma instituição maior que o presidente.
Todo candidato, a qualquer cargo, no Senado ou no Congresso, precisa demonstrar apoio a Israel para conseguir se eleger.
A escritora passou os últimos dias sob tensão, chorando com as notícias que recebia do amigos em Gaza, muitos dos quais faziam uma refeição a cada três dias e corriam de casa em casa fugindo das bombas.
Quando fala de literatura, sua voz se torna mais suave, mas no que se refere à causa política, é incisiva.
— A Palestina sempre foi um país em que viveram muçulmanos, judeus, cristãos. Precisamos nos mover rumo a um conceito mais universal de Humanidade, rumo a uma sociedade mais digna, garantindo a igualdade de todas as pessoas diante da lei, sem exclusividades — destacou Susan, que, no momento, prepara um novo romance que se passa em diferentes lugares, tendo como base o Oriente Médio.
E, desta vez, decidiu mergulhar na mente de uma protagonista judia.
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