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Rio de Janeiro, RJ, Brazil
Cláudia Andréa Prata Ferreira é Professora Titular de Literaturas Hebraica e Judaica e Cultura Judaica - do Setor de Língua e Literatura Hebraicas do Departamento de Letras Orientais e Eslavas da Faculdade de Letras da UFRJ.

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quarta-feira, 5 de março de 2008

O anti-semitismo oficial no Brasil (no pós-guerra )

História

Hipocrisia oficial

Novos documentos mostram que o anti-semitismo do governo Dutra era ainda pior do que se sabia


Marcelo Bortoloti


Barrados: judeus sobreviventes da guerra (acima) não eram aceitos
no Brasil no governo Dutra, que adotou claras restrições (abaixo)


Inflexível: governo não respondeu à campanha pelos refugiados


A resistência do anti-semitismo no Brasil no governo do presidente Eurico Gaspar Dutra (1946-1951) já apareceu em pesquisas anteriores, mas nunca com a clareza mostrada agora pela historiadora Maria Luiza Tucci Carneiro, da Universidade de São Paulo (USP), por meio de documentos do Itamaraty, ainda inéditos, encontrados por ela. São circulares secretas e telegramas oficiais que mostram como o Brasil do pós-guerra barrou a entrada de judeus, negros e orientais. O governo Dutra passou à história oficial como um período relativamente liberal na política brasileira. Depois de oito anos sob a ditadura do Estado Novo, de Getúlio Vargas, o país voltou a ter eleições diretas para presidente. Dutra ganhou limpamente e patrocinou uma nova Constituição. A Carta rendeu-se aos ares de liberdades democráticas que sopravam no mundo depois da derrota militar do fascismo na Alemanha, na Itália e no Japão.

A maior vitrine desse novo Brasil liberal foi a primeira Assembléia-Geral das Nações Unidas (ONU), em que o país se mostrou preocupado com a causa dos refugiados, principalmente judeus, expatriados na II Guerra Mundial. Foi um brasileiro, Oswaldo Aranha, que presidiu a assembléia da ONU que decidiu pela partilha da Palestina para a criação do estado de Israel. Como sempre, a história oficial não resiste a uma análise mais cuidadosa de suas entranhas. O governo de Dutra não é exceção. Como mostra a professora Tucci Carneiro, a despeito da fachada liberal, muitas das diretrizes de governo eram flagrantemente discriminatórias. Um exemplo: em 1946, o chefe da delegação brasileira, Luiz Martins de Souza Dantas, discursou na ONU em nome do Brasil afirmando que "cada nação deve aprender a subordinar sua soberania ao interesse da humanidade como um todo". Uma semana depois, um telegrama confidencial do Ministério das Relações Exteriores dizia que "ainda estamos a braços com o quisto da emigração japonesa e não desejaríamos agravar nossa situação com a entrada de elementos judeus".

As descobertas recentes nos arquivos do Itamaraty fazem parte de cerca de 10 000 documentos que até meados deste ano terão sua consulta franqueada pela internet no Arquivo Virtual do Holocausto e Anti-Semitismo, da USP. O projeto vai tornar públicos documentos datados entre 1933 e 1948.

Como era de rigor nas universidades européias e mesmo nos Estados Unidos naquele tempo, vigorava também entre os pensadores oficiais brasileiros um certo ideal eugênico. Era disseminada entre eles a crença de que existiam raças mais propensas ao progresso tecnológico e material do que outras, tidas como usurárias, os judeus, ou preguiçosas, os negros e asiáticos. A debacle do nazismo e suas experiências radicais de purificação das raças não tiveram, como se pode pensar, o poder de demolir imediatamente a eugenia em suas vertentes acadêmicas e diplomáticas. O pensador brasileiro Gilberto Freyre (1900-1987), propagador pioneiro do relativismo cultural no mundo, lembrava com espanto que na própria França, recém-libertada da ocupação nazista, a noção do melhoramento genético da raça humana prevalecia até na Sorbonne, sua mais prestigiosa instituição universitária. Como é típico, o Brasil de Dutra deixava-se embalar mais pela Europa do que por Freyre, seu jovem e revolucionário pensador. A diplomacia facilitava a entrada de imigrantes europeus, mas dificultava a vida deles se fossem judeus. Para asiáticos e negros, a burocracia era também quase intransponível.

"Havia um projeto de branquear a população do Brasil baseado no princípio de que o atraso do país podia ser explicado pela má formação étnica de sua população", diz o historiador Fábio Koifman. No pós-guerra, essa idéia vigorava ainda com força total. Pessoas julgadas pouco úteis ao projeto desenvolvimentista brasileiro tinham seu ingresso no país dificultado. Lá fora as aparências eram salvas por gestos generosos, enquanto internamente se dava plena vazão ao pensamento dominante de que se deveria evitar a entrada das massas desvalidas de imigrantes indesejáveis. Diz Tucci Carneiro: "A criação do estado de Israel acabou sendo um alívio para o governo brasileiro. Não pela questão dos refugiados, mas porque resolvia o problema interno da imigração dos judeus". Os documentos do Itamaraty encontrados por ela mostram com clareza esse descompasso entre a imagem oficial do governo brasileiro e a prática cotidiana das repartições. Na circular reservada nº 129, de 1946, fica instituído que o visto a estrangeiros de origem judaica e asiática deveria ser sujeito, caso a caso, à aprovação do Conselho de Imigração e Colonização, que respondia diretamente ao presidente da República. Nesse mesmo ano, a circular n° 200 determina que "viajantes israelitas" sem visto, mesmo que viessem de passagem, deveriam ter seus passos monitorados para não se fixarem no país. Outra resolução reservada, n° 161, de 1949, impunha regras à concessão de visto a um parente de judeu, uma vez que, "dentro da nossa política imigratória, há correntes alienígenas que não atendem a nossos interesses".


Extraído de:
Revista Veja, edição 2046, 06/02/2008.


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