História
Hipocrisia oficial
Novos documentos mostram que o anti-semitismo do governo Dutra era ainda pior do que se sabia
Marcelo Bortoloti
no Brasil no governo Dutra, que adotou claras restrições (abaixo)
A maior vitrine desse novo Brasil liberal foi a primeira Assembléia-Geral das Nações Unidas (ONU), em que o país se mostrou preocupado com a causa dos refugiados, principalmente judeus, expatriados na II Guerra Mundial. Foi um brasileiro, Oswaldo Aranha, que presidiu a assembléia da ONU que decidiu pela partilha da Palestina para a criação do estado de Israel. Como sempre, a história oficial não resiste a uma análise mais cuidadosa de suas entranhas. O governo de Dutra não é exceção. Como mostra a professora Tucci Carneiro, a despeito da fachada liberal, muitas das diretrizes de governo eram flagrantemente discriminatórias. Um exemplo: em 1946, o chefe da delegação brasileira, Luiz Martins de Souza Dantas, discursou na ONU em nome do Brasil afirmando que "cada nação deve aprender a subordinar sua soberania ao interesse da humanidade como um todo". Uma semana depois, um telegrama confidencial do Ministério das Relações Exteriores dizia que "ainda estamos a braços com o quisto da emigração japonesa e não desejaríamos agravar nossa situação com a entrada de elementos judeus".
As descobertas recentes nos arquivos do Itamaraty fazem parte de cerca de 10 000 documentos que até meados deste ano terão sua consulta franqueada pela internet no Arquivo Virtual do Holocausto e Anti-Semitismo, da USP. O projeto vai tornar públicos documentos datados entre 1933 e 1948.
"Havia um projeto de branquear a população do Brasil baseado no princípio de que o atraso do país podia ser explicado pela má formação étnica de sua população", diz o historiador Fábio Koifman. No pós-guerra, essa idéia vigorava ainda com força total. Pessoas julgadas pouco úteis ao projeto desenvolvimentista brasileiro tinham seu ingresso no país dificultado. Lá fora as aparências eram salvas por gestos generosos, enquanto internamente se dava plena vazão ao pensamento dominante de que se deveria evitar a entrada das massas desvalidas de imigrantes indesejáveis. Diz Tucci Carneiro: "A criação do estado de Israel acabou sendo um alívio para o governo brasileiro. Não pela questão dos refugiados, mas porque resolvia o problema interno da imigração dos judeus". Os documentos do Itamaraty encontrados por ela mostram com clareza esse descompasso entre a imagem oficial do governo brasileiro e a prática cotidiana das repartições. Na circular reservada nº 129, de 1946, fica instituído que o visto a estrangeiros de origem judaica e asiática deveria ser sujeito, caso a caso, à aprovação do Conselho de Imigração e Colonização, que respondia diretamente ao presidente da República. Nesse mesmo ano, a circular n° 200 determina que "viajantes israelitas" sem visto, mesmo que viessem de passagem, deveriam ter seus passos monitorados para não se fixarem no país. Outra resolução reservada, n° 161, de 1949, impunha regras à concessão de visto a um parente de judeu, uma vez que, "dentro da nossa política imigratória, há correntes alienígenas que não atendem a nossos interesses".
Extraído de:
Revista Veja, edição 2046, 06/02/2008.
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